‘A Song of Ice and Fire’ é uma saga medieval. E de fantasia.
Fantasia medieval, eu poderia dizer.
Alta fantasia.
Ok, estou ligando os pontos: Tolkien, certo?
Errado.
A grande jogada de ‘A Song of Ice and Fire’ – que o diferencia de um romance de fantasia usual, com criaturas mágicas que se espalham pelo cenário como peças mal resolvidas de uma partida de RPG – é ser uma fantasia descompromissada com a fantasia. Deixe-me explicar: aqui, não há lugar para artefatos mágicos que resolvem os problemas dos personagens nem jornadas que percorrem milhas de distância a fim de alcançar algum objetivo que vai acabar com todo o mal que espreita o mundo. O que conta no mundo proposto por George R. R. Martin são os personagens: suas relações, seus pontos de vista, seus ímpetos e seus desejos estão sempre sobrepujados por qualquer outro idealismo. A fantasia serve apenas como pano de fundo para as relações humanas, principalmente no primeiro volume, ‘A Game of Thrones’, que mais parece um romance histórico ambientado em um universo paralelo, salvo algumas pequenas partes fantásticas (em todos os sentidos).
Já que falei do primeiro volume, vamos a ele: a história começa de forma eletrizante, com um prólogo com clima de terror que deixa qualquer leitor com duas pulgas atrás da orelha. Logo no início, somos apresentados a cenários gélidos e a descrições pormenorizadas. George R. R. Martin, roteirista de séries como ‘Além da Imaginação’ e ‘A Bela e a Fera’, sabe utilizar muito bem seus conhecimentos de narrativa para guiar o leitor por capítulos que, apesar de muitas vezes longos, te prendem em um vórtice de hipnose do qual você só se satisfaz quando o conclui e descobre – ou não – o que está acontecendo.
Depois que o prólogo acaba e enfim podemos respirar, somos apresentados à família Stark, residentes do castelo de Winterfell, um ponto localizado à beira da Estrada Real (Kingsroad), entre a Província Real (King’s Landing) e o Muro (The Wall). Lá, o soberano Eddard Stark comanda seu pequeno séquito ao lado de sua esposa Catelyn e seus seis filhos: Robb, Sansa, Arya, Brandom, Rickon e Jon – sendo o último um bastardo de mãe desconhecida. Pode parecer absurdo dizer isso – uma vez que, ao pensarmos em reinos e em castelos, temos uma visão antecipada de riqueza, imponência e ostentação –, mas é quase como se Eddard e sua família vivessem em um pequeno chalé de campo, longe das preocupações da cidade grande e tendo como únicas distrações os banquetes, os treinos com espadas e a reza aos deuses das florestas.
O plot do livro é um tanto normal: um personagem em uma aparente zona de conforto é transportado para uma nova realidade e um novo universo, onde deve aprender a conviver com figuras hostis à sua personalidade e aos seus conceitos de vida. No primeiro livro, o personagem de Eddard Stark é responsável por essa repentina mudança. Ele é um homem que vive sua vida sobre a base da honra, aquele que se destaca no mundo sujo que George R. R. Martin desenha pelo simples fato de tentar ser justo até as últimas consequências. Seu único erro durante o passado – que resultou no filho bastardo Jon Snow – é um de seus maiores arrependimentos. Traição não é uma palavra que esteja no dicionário do lorde de Winterfell.
A mudança de vida de Eddard vem com a morte do braço direito do rei, Jon Arryn. Robert Baratheon, o próprio rei dos Sete Reinos do Continente de Westeros, viaja até Winterfell com uma proposta que parece ser irrecusável para Eddard Stark: o soberano deseja que seu velho amigo seja sua nova Mão, algo como um conselheiro pessoal. Não há nenhuma outra pessoa em quem Robert confie mais para o cargo e, apesar da distância que o tempo impôs aos dois e às consequências do passado – Robert Baratheon se casaria com a irmã de Eddard, mas esta morreu e obrigou o rei a desposar uma mulher de outra família –, Robert vê na imagem de Eddard tudo o que nós, leitores, vemos: o homem correto, pai de família digno de confiança, daqueles em quem qualquer um confiaria de olhos fechados.
A partir daí, somos apresentados a um macrocosmo distante de Winterfell: King’s Landing. Agora não há lugar para honra ou justiça tal como Eddard a conhece. Ao adentrarmos King’s Landing, logo percebemos que todos defendem seus próprios interesses e sobrepõem-se a qualquer código de honra. Enquanto Eddard investiga os motivos da morte de Jon Arryn, antiga Mão do Rei, e descobre que ele pode ter sido assassinado, o soberano da família Stark percebe, perplexo, que tudo aquilo em que acredita e que transmitiu aos seus filhos não passa de um discurso vazio praticado pela realeza dos Sete Reinos, e cada vez se afunda mais nos segredos e jogos sujos praticados por eles. Petyr Baelish – também conhecido como Littlefinger (alguma coisa como ‘mindinho’ em português) – solta uma das frases que pode resumir todo o jogo de interesses que acontece em King’s Landing. Ele diz para Eddard Stark, em certo ponto da narrativa: ‘desconfiar de mim foi a coisa mais sábia que o senhor poderia ter feito’. É esse o jogo: não confie em ninguém, não acredite que ninguém é bom e nem tente culpar vilões inexistentes.
Já longe da realeza, em uma narrativa paralela, somos apresentados a Daenerys e Viserys Targaryen, últimos descendentes dos antigos reis dos Sete Reinos, remanescentes de uma época em que dragões governavam Westeros e todos se curvavam ante seu poder. A jornada deles em busca do restabelecimento de seu poder – o trono dos Targaryen fora usurpado por Robert Baratheon, que institucionalizou a família Baratheon como nova governante – é, apesar de paralela, extremamente importante para a narrativa do livro.
Apesar do conceito espalhado por aí de que em A Song of Ice and Fire ‘vilões não existem e mocinhos só existem para defender o seu interesse’, é possível notar que George R. R. Martin se esforça, nesse primeiro volume, para pintar a família Stark como digna de honra e a família Lannister – da qual provém a rainha Cersei Lannister, o anão Tyrion Lannister e o chefe da Guarda Real Jaime Lannister – como vilões traiçoeiros e cheios de segundas intenções. É um erro dizer que o primeiro livro da série se pinta em escalas de cinza, que não há vilões e heróis definidos, pois há. Humanos, sim, mas ainda assim divididos entre os ‘bons moços que estão sempre atrasados em relação aos vilões’ e ‘os vilões ardilosos que sempre querem se aproveitar da inocência alheia’. Mas isso não torna a narrativa menos proveitosa.
Os personagens são, sem sombra de dúvida, o ponto alto de George R. R. Martin. O autor consegue transformar cada um dos protagonistas em personagens memoráveis ao leitor. Somos apresentados a uma gama imensa de personagens e cada um deles consegue convencer por seus pensamentos e por suas ações, desde os mais idealistas, bobos e inocentes – como Sansa Stark e o próprio Eddard Stark –, passando por personagens cruéis, daqueles que adoramos odiar – Cersei e Jaime Lannister, Petyr Baelish – e os ardilosos, inteligentes e sagazes, que te cativam pelo seu raciocínio rápido e ações algumas vezes calculadas, outras não – Tyrion Lannister, Arya Stark.
Ao abrir as páginas do livro ‘A Game of Thrones’ (A Guerra dos Tronos, pela LeYa editora), prepare-se para mergulhar em um mundo extremamente convincente, desde suas descrições físicas e religiosas até os pensamentos de seus personagens. Traições, sangue, sexo e assassinatos são apenas alguns dos aperitivos que esperam para ser lidos durante as mais de quinhentas páginas do primeiro volume. Então se recoste confortavelmente em seu sofá, abra o livro e aproveite ao máximo esse mundo incrível que George R. R. Martin decidiu descrever.
Estou esse livro. Meu Deus. É muito bom! E é realmente como tu dissestes. E é isso que Martin fez - tirar o foco da fantasia para focar nas pessoas e suas relações - que torna o livro fantástico.
ResponderExcluirÓtimo texto. Adorei teu blog.
Abraços!
Estou lendo* (usasushausha, me esqueci de uma palavrinha...)
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