De uns tempos para cá, o mercado editorial de ficção especulativa (que engloba fantasia, ficção científica, terror e outras ótimas bizarrices) vêm crescendo de uma forma assustadoramente boa. Grande parte desses lançamentos tem um público-alvo específico: geralmente jovens, dos seus doze aos dezesseis anos, que ainda estão se acostumando com a literatura e querem ver coisas que despertem o seu interesse imediato. Aí entram vampiros que se apaixonam, manuais de sobrevivência para se adequar a um mundo de zumbis, escolas de bruxos, anjos versus demônios, etc, etc e etc.

No meio de todos esses livros com adolescentes cheias de amor pra dar e hormônios a flor da pele, talvez o livro ‘A Passagem’ tenha passado despercebido. Não sei exatamente por qual motivo não se falou muito sobre esse lançamento. Talvez seja sua capa, que mais parece uma continuação do livro ‘A Cabana’ do que qualquer outra coisa; ou quem sabe a sua tímida divulgação por parte da editora Sextante; ou ainda por não se adequar exatamente a esse mercado adolescente que já mencionei.

O livro tem tudo para fazer sucesso: um enredo interessante, comentários positivos de autores consagrados – como a recomendação do mestre do terror Stephen King logo na quarta capa do livro – e um texto fluido e cativante logo nas primeiras páginas.

Vamos a ele: “A Passagem” (Editora Sextante, 2010, 815p.) se passa em um universo pós-apocalíptico, onde um grupo de sobreviventes tenta conviver em harmonia com um mundo hostil e infestado de vampiros.

É isso o que diz a sinopse, mas essa é apenas a segunda parte dessa história. O livro, na verdade, começa de modo tímido e suave, desconstruindo um pouco a ação e a velocidade que a sinopse promete. Logo nas primeiras páginas, somos apresentados à garotinha Amy, a Garota de Lugar Nenhum, Aquela Que Surgiu, A Primeira, Última e Única, a que viveu mil anos (e não se preocupem que nada disso é spoiler, pois está logo no primeiro parágrafo do livro). Amy é uma menina rodeada de mistérios que logo se vê transformada na décima terceira e última cobaia de um projeto governamental denominado Projeto Noé, que consiste em analisar o comportamento de um vírus que, a princípio, trataria doenças e serviria como ‘fonte da juventude’ para a humanidade. Para esse propósito, doze criminosos no corredor da morte (e Amy) são destacados para servirem de cobaias humanas. O vírus dá longevidade anormal, resistência a doenças, força e inteligência acima da média, mas possui efeitos colaterais, tais como hipersensibilidade a luz e um único ponto fraco localizado logo abaixo do esterno.

Aí acontece o que todo mundo espera que aconteça: dá merda. As cobaias escapam e se espalham pelo globo, fazendo aquilo que mais gostam: caçar e infectar outros humanos. Pouco a pouco, Amy, na companhia do agente do FBI Wolgast, vê o mundo se transformar em um lugar perigoso e hostil à sobrevivência humana.

Só então chegamos à segunda parte do livro (e lá se vão umas 300 ou 400 páginas): passam-se uma centena de anos e somos apresentados a uma colônia humana perdida no meio do nada, protegida por muros e eletricidade precária, prontas a atirar em qualquer vampiro que passe de certo ponto. Ou, como eles mesmo dizem quando se referem às criaturas, ‘virais’, ‘saltadores’ ou ‘fumaças’. As denominações são variadas.

Mas paro de falar no enredo por aqui para não estragar possíveis surpresas. Prefiro me ater ao que realmente interessa: afinal, ‘A Passagem’ é um livro de qualidade? Merece ser lido? É original?

Como os últimos serão os primeiros, vamos tratar primeiro da originalidade da trama: aos meus olhos pouco treinados, a sinopse me pareceu uma cópia em xilogravura de Resident Evil: a Umbrella Corporation o governo faz um experimento com um T-vírus vírus, ele foge ao controle e cria uma horda de zumbis vampiros sanguinários e sedentos por alimento. Uma garota chamada Alice Amy, no entanto, mantém todas as vantagens e poucas desvantagens de ser infectada.

(o parágrafo acima foi feito com base nos filmes pela total inabilidade deste que vos fala em jogar algum jogo de zumbis até o fim)

Apesar da falta de originalidade evidente, o livro, como já comentei, possui uma escrita agradável e fácil, daquelas que o leitor pega e só larga quando os olhos não aguentam mais ler. E grande parte desse cativo se dá por conta dos personagens: eles sim são cuidadosamente construídos e muito bem guiados pelo autor. Apesar de alguns servirem de figuração e serem mero gado de saltadores, os principais estão ali, com seus dramas e suas dúvidas, suas imersões e suas reflexões sobre o futuro, seus medos com o que está do outro lado do muro e de até quando conseguirão sobreviver sob aquelas condições precárias.

Se você está procurando um livro que mude a sua vida e seja uma primazia de originalidade, talvez “A Passagem” te decepcione um pouco. Mas se você quer ler para se distrair, se empolgar com uns tiros e uns bons sustos literários, vale muito a pena desembolsar uma graninha por ele.

P.S. Aos cinéfilos de plantão, fiquem ligados na cena em que o grupo assiste ao filme ‘Drácula’, de Ted Browning. Por ser o único filme disponível no acervo, o grupo que o assiste repete cada fala de cor, de começo rindo e levando pouco a sério, mas pouco a pouco imergindo no filme até que todos o estejam contemplando de forma total e absoluta. Uma das melhores cenas do livro, certamente.