Eu poderia começar essa resenha falando: ‘há momentos na vida de um homem onde tudo o que ele quer é esquecer um pouco o está acontecendo ao seu redor e se distrair’, ou então ‘o cansaço é uma arma contraproducente na vida literária de qualquer pessoa, sobretudo na de um leitor que se arrisca tanto entre clássicos e livros mais densos e acaba se esquecendo de que a leitura, às vezes, deve ser divertida’, mas não vou começar assim. Seria um contrassenso começar a resenha de um livro tão legal de um jeito tão chato como esse.

Devo confessar: tenho um preconceito com Young Adult. Talvez seja a síndrome Crepúsculo e seus derivados ainda piores (como conseguem?!), mocinhas desmioladas que se apaixonam perdidamente por príncipes encantado e sobrenaturais que podem ter quem quiserem, mas sempre sentem o mesmo tipo de atração por mulheres sem sal. Então não foi com bons olhos que olhei para o livro “Cidade dos Ossos” (Editora Galera, 462 págs), da autora Cassandra Clare. A capa brilhante com um homem de músculos pulsantes e sem camisa não foi um ponto positivo para mim; a sinopse (garota-descobre-mundo-oculto-e-se-apaixona-por-anjo) também não.

Tá bom, Lucas, então por que raios você leu esse livro?

Por dois motivos: recomendações positivas e a promoção de um tal site subaquático.

Vamos logo ao que interessa: a primeira coisa que você precisa saber sobre esse livro é que ele funciona – e talvez essa seja a grande diferença dele para o resto dos Young Adults que vejo por aí. Tudo bem, o livro tem tudo o que uma menininha de treze anos gostaria de ler: uma protagonista feminina, um triângulo amoroso, coadjuvantes com seus momentos interessantes, diálogos bem sacados e cheios de ironia. E, em contrapartida, também tem coisas que os meninos gostariam de ler: ação, ação, ação e... ação.

O livro não para um segundo. Já começa a 100Km/h, numa cena em que a protagonista, Clary, é apresentada aos leitores como uma menina de quinze anos que só quer se divertir em uma boate de gente estranha e esquisita ao lado de seu melhor amigo, Simon. Está tudo indo bem, com pessoas de seus cabelos azuis e fantasias excêntricas, até que Clary vê três figuras cobertas de tatuagens cometendo um assassinato. Ela grita, pede ajuda para o amigo e tenta entender o que está acontecendo mas, com muito espanto, descobre que apenas ela pode ver os assassinos tatuados.

A partir daí, as coisas ficam ainda mais aceleradas: demônios, espadas reluzentes, tatuagens que fornecem poderes e reviravoltas das mais diferentes intensidades e naturezas ditam o tom desse primeiro livro da série ‘Instrumentos Mortais’.

Os personagens de Cassandra Clare são extremamente humanos e reais – ao menos os protagonistas Clary e Simon são. Os dois são retratos da juventude sem frescuras ou idealismos excessivos: com alguns sonhos, um ou outro defeito e muita, mas muita ironia. O que mais me chamou atenção nesse livro, principalmente no que diz respeito aos diálogos, é que eles carregam uma dose extremamente bem-humorada de sarcasmo e ironia. Parece ser a válvula de escape mais fácil para o humor trágico, para fazer rir nas horas de desespero ou simplesmente para responder a uma pergunta idiota.

Já o mesmo não acontece com o protagonista-sonho-de-consumo-feminino, Jace. O personagem parece tão esforçado em ser um imbecil que soa quase caricatural, como se não tivesse a mínima paciência ou interesse pelos problemas daqueles que o rodeia. É claro que criar um personagem que dá patadas na protagonista e tem uma relação de amor/ódio é um dos recursos mais eficientes para gerar uma paixão instantânea, mas acho que Jace poderia ter sido um pouco mais explorado nessa questão: seus sentimentos são no mínimo desregulados e, logo ao fim, quando finalmente revela uma de suas maiores fraquezas, o modo como se comporta passa a ser contraditório. Para um BIG MEGA spoiler, passe o mouse sobre o parágrafo seguinte; senão, pule para o próximo.

Me refiro à parte em que Jace descobre que o vilão Victor Valentim é seu pai. Jace, até então o símbolo do desdém e da indiferença, mostra-se extremamente subserviente ao pai. Passa para o lado dele e acredita no discurso de Valentim com a mesma velocidade que eu acredito que dois e dois são quatro. Faltou, nessa parte crucial, um pouco de questionamento por parte do personagem.

Quanto à separação vilão/mocinhos desse primeiro volume, acho que a escolha de Clare por colocar toda a carga de vilania em apenas um personagem foi acertada. É maniqueísta? A princípio sim, mas, analisando bem, dá pra notar que essa é exatamente a intenção dela. Clare não quer personagens cinzas nem quer que você se compadeça do vilão e odeie o mocinho. Ela coloca cada peça exatamente onde deseja e, a partir disso, manipula-os da forma que acha mais interessante. Não é exatamente algo que eu goste ou aprove, mas funcionou bem no caso de ‘Cidade dos Ossos’.

Outra coisa que achei interessante sobre o livro é a história por trás da autora (sem trocadilhos infames sobre quem está atrás de quem, por favor): Cassandra Clare é uma nerd assumida, otaku daquelas com cara de quem frequentava eventos de anime com bandana de Naruto na cabeça e réplica de pokébola na mão. Além disso, a autora começou sua carreira literária escrevendo fanfics de Harry Potter. Acho interessante ver que alguém conseguiu crescer com as mesmas influências que grande parte da galera que nasceu no fim dos anos 80 e início dos 90 – mais ou menos como eu – e ainda assim conseguir ser bastante original (coisa que está faltando um pouco por aí, em geral). Ponto positivo para ela.

Cassandra Clare dosa cenas de uma forma que dificilmente se vê por aí nos livros do mesmo gênero: é explicativo quando deve ser, descritivo só quando estritamente necessário e narrativo na grande maioria das vezes, o que torna a leitura fluida e memorável. É daqueles livros que você abre em qualquer lugar – em um quarto silencioso ou em um ônibus lotado – e consegue entender perfeitamente o que está acontecendo, sem precisar esforçar muito sua mente para visualizar as cenas. Ótimo para quem quer se desligar um pouco do mundo ao seu redor e aproveitar um pouco um mundo completamente diferente. Um livro que recomendo, é claro.