Conheci a N. K. Jemisin nos meus passeios pelo site do Nebula. Parece que o primeiro livro da Inheritance Trilogy, “Hundred Thousand Kingdoms” (Orbit, 432p.) foi indicado para o Nebula 2011. Tudo bem, perdeu para o “Blackout/All Clear”, da Collie Willis (que eu pretendo ler nas férias, porque achei o plot bem interessante. Mais sobre ele em qualquer outro post futuro), mas a capa era tão, mais tão legal, que eu me senti incumbido a ler o livro e tirar uma opinião dele. Sim, nesse caso eu não fazia a mínima ideia do plot ou de quem era a autora. Levei o livro pela capa.

Vamos à sinopse: o livro é narrado através do ponto de vista de Yeine, uma menina que foi criada em terras consideradas bárbaras e não tem a mínima disposição para ser da realeza. Quando sua mãe morre, Dekarta, seu avô e soberano do reino flutuante de Sky, a convoca para seu castelo e, como recusar o convite consistiria em um dos maiores insultos à realeza, Yeine aceita o pedido e vai até Sky. Lá, a menina descobre que o soberano está indeciso sobre quem deverá tomar seu lugar depois de sua morte: se Scimina ou Relad, seus dois filhos, nascidos e criados em Sky, ou Yeine, uma neta estrangeira.

Além de tudo isso, há outro fato muito importante que deve ser considerado: no reino de Sky, deuses andam pelos salões e obedecem aos humanos, pois foram subjugados por Itempas, o grande deus da luz, venerado por todos em Sky. Quem possui a marca de Itempas – ou seja, todos os humanos da realeza de Sky – possui também a prerrogativa de controlar os deuses, seja para o bem, seja para o mal.

Há algumas ideias bastante interessantes em “Hundred Thousand Kingdoms”: o fato dos deuses servirem aos humanos é uma jogada muito bem pensada, principalmente quando acreditamos que nenhum dos deuses (nem dos humanos, na verdade) pode ser confiável. O comando exato deve ser falado ao deus, do contrário, eles podem interpretar aquilo como bem entenderem e usarem de artimanhas para inverter suas palavras. Me lembrou um pouco de Jonathan Stroud e sua série Bartimaeus, mas não sei se a influência existe ou não.

No começo da história, é tudo bastante confuso para o leitor, e tenho que confessar que me senti um pouco perdido entre worldbuilding, intenções dos personagens e justificativa para suas ações. Acho que a N. K. Jemisin poderia ter dosado um pouco melhor a mão em segurar as grandes revelações da trama: ela parece deixá-las todas para a segunda metade da história, e o leitor fica um pouco perdido para entender, à princípio, porque seu avô Dekarta convocou-a, porque considera colocá-la no poder e qual é a grande vantagem de uma menina que nunca se envolveu com política estar ali, lutando para mostrar ao avô que merece o lugar que talvez ela nem mesmo queira. É claro que, no fim, tudo é explicado, desde os sonhos macabros de Yeine às intenções de Dekarta, mas ainda assim acho que algumas pistas poderiam ser jogadas ao longo da narrativa, apenas para o leitor se sentir mais confortável.

Já quanto a construção de personagens, tiro duas conclusões completamente distintas: os deuses são muito bem construídos, enquanto os humanos que transitam pelo reino são rasos, com exceção de um ou dois.

Há, entre os deuses, diferentes camadas que podem ser analisadas. O principal dentre os deuses é Nahadoth, considerado o deus mais perigoso e mesquinho em Sky, soberano da noite que foi subjugado por Itempas. Sua relação com Yeine, de início estranha e conturbada, evolui para um romance dos mais diferentes que já li. Aqui, N. K. Jemisim mostra realmente toda a sua capacidade de escritora, adentrando em cenas cada vez mais envolventes entre os dois personagens. A relação dos dois é completamente construída pela desconfiança, e essa sensação de nunca saber se Nahadoth está ou não realmente interessado em Yeine ou se há alguma intenção obscura é um dos pontos mais positivos do livro.

Outros deuses também acabam te cativando, como o deus Sieh, filho de Nahadoth e considerado tão perigoso quanto ele. Ele é a imagem da dualidade inocência/perversão, tendo atitudes sempre muito extremas. Ainda assim, consegue trazer para a narrativa uma dose de seriedade infantil que às vezes soa mais maduro do que Yeine – e, infelizmente, acontece aquele caso do protagonista ser eclipsado pelo coadjuvante.

Quanto os personagens humanos – principalmente Dekarta, Scimina, Relad e a própria Yeine –, somos apresentados a figuras um tanto quanto unilaterais: Scimina parece uma aprendiz de Cersei Lannister, menos competente e complexa; Relad parece um figurante que quer se manter neutro de qualquer problema; Dekarta é um daqueles clássicos velhos de histórias de fantasia com um passado conturbado mas um presente completamente tedioso; e Yeine, apesar de ser um pouco mais trabalhada, soa como uma menina que só quer entender se a morte da mãe tem alguma relação com o chamado dela para Sky e não parece interessada no poder, quando ele pode claramente ajudá-la a descobrir o que aconteceu.

Outro ponto bastante positivo do livro é o worldbuiding, principalmente na parte da cosmogonia do universo: há uma certa poesia na história contada sobre a criação do mundo pelas mãos dos três grandes deuses, representantes do dia, do amanhecer/crepúsculo e da noite. E o fato de andarem entre os humanos mostra que eles estão ali há muito tempo, quem sabe até mesmo cansados de tudo aquilo. Não raro, Nahadoth ou Sieh falavam sobre o passado, quando andavam entre o vazio de um mundo não criado, e Yeine talvez não consiga entender toda a amplitude disso quando eles estão ali, sentados na frente dela, muitas vezes tão frágeis quanto qualquer humano comum. Essa aproximação divino/humano foi uma ideia interessante, que talvez demonstre um pouco da visão de mundo de Jemisin.

No fim, temos um livro tanto com pontos positivos quanto negativos. Transpostas as primeiras cinquenta páginas, quando as respostas começam a ser moldadas para ser posteriormente respondidas, o livro engata. Não entra na minha lista de preferidos, mas é um livro que recomendo se você quiser ler umas ideias boas e um final bastante surpreendente.