Charles Dickens talvez seja o primeiro autor que penso quando quero falar de alguma coisa que tenha relação com análise social. O autor inglês tornou-se famoso, em seus últimos trabalhos, por mostrar aos ingleses do século XIX quem eles realmente eram, mesmo que isso pudesse significar abrir algumas feridas nos egos alheios. Dostoiévski talvez também tenha feito isso, em uma escala menor, ao abordar os aspectos pessoais do indivíduo e analisá-lo como um bicho urbano e construído através da sociedade que o cerca, e não construtor dessa mesma sociedade.

Não é à toa que a edição de bolso da L&PM traz em sua capa uma citação de Norman Mailer que compara Bret Easton Ellis à Dostoiévski. A princípio pensei que pudesse ser presunção tentar equiparar dois autores tão distantes, sendo Dostoiévski um dos parâmetros de literatura social existentes na história. Mas, ao longo da leitura do livro, pude perceber que a comparação é extremamente válida. Easton consegue, através de seu personagem principal, Patrick Bateman, mostrar uma sociedade norte-americana vazia e fútil, excessiva e preocupada em se calcar em aparências. Easton expõe essa sociedade em seus mínimos detalhes, utilizando para isso um personagem obsessivo, egocêntrico, cruel e maníaco, para dizer o mínimo.

O grande trunfo de ‘Psicopata Americano’ é ser uma história sobre um personagem. Não há conflito imediato, não há plot, não há problema que precisa ser resolvido e que guia o leitor ao longo da narrativa. O livro é um exercício de exploração, de montar o quebra-cabeça que é Patrick Bateman, para, no fim, continuarmos a não entendê-lo. Easton é extremamente eficaz em sua escrita, e mostra para nós um personagem que, de início, é tímido e inexpressivo, mostrando-se até mesmo desinteressante nas primeiras vinte páginas, preocupado com seu corpo, as roupas que os outros vestem e o tema de seu programa matinal favorito. Até então, não passa de uma história comum sobre um cara que passa a vida inteira malhando, vendo TV e ouvindo música.

Mas, ao longo da narrativa, percebemos que as coisas são um pouco mais complicadas do que isso. Patrick Bateman possui um gosto bastante peculiar de torturar e assassinar mendigos, prostitutas, animais, crianças e qualquer coisa que possua um coração que bata regular ou irregularmente. Bateman é um personagem extremamente complexo: em alguns momentos, parece fazer de seus assassinatos consecutivos apenas mais uma das etapas de seu dia (acordar / tomar banho / fazer a barba / cortar a garganta da mulher amarrada na cama / vestir meu Armani / ir para o brunch), e, em outros, faz a morte parecer um processo complicado e inexecutável, como quando é perturbado por um homem que cisma que ele é homossexual e decide que a melhor opção é apenas se esquivar das tentativas do sujeito.

A crueldade de seus atos e seus pensamentos o ponto chave da narrativa. Easton nos brinda (ou nos atormenta, dependendo do ponto de vista) com jogos sádicos de sexo e tortura, que envolvem canibalismo, utilização de animais peçonhentos, artefatos perfurantes, cortantes, quentes, frios, pontiagudos, etc etc etc. As cenas são extremamente gráficas, chegando a beirar o insuportável em alguns momentos. E o jogo que Easton faz, durante os capítulos, é incrível: em um capítulo Bateman está torturando duas prostitutas com pregos, martelos, ratazanas e furadores de gelo e, no capítulo seguinte, gasta cerca de dez ou quinze páginas para descrever a discografia do Genesis ou da Whitney Houston, ou explica como se barbear corretamente durante a manhã, sem que a pele resseque.

O livro passeia entre delírios e realidade. O personagem muitas vezes idealiza diálogos em sua cabeça e, em certos momentos, essa linha não fica muito clara para o leitor. Não sabemos se ele está realmente dizendo o que diz e ninguém está prestando atenção ou se ele apenas imagina tudo aquilo. Sua obsessão é desenhada através de seus pensamentos: detalhar quais são as marcas de roupas e acessórios que cada um utilizada, descrever todos os cosméticos de seu banheiro, contar quantas vezes esbarra com um cartaz da peça “Os Miseráveis” na rua ou qual o tema do dia do programa matinal “The Patty Winters Show”, seu programa favorito.

Patrick Bateman é, ao mesmo tempo, um analista frio de sua sociedade e um produto da mesma. Ele funciona como um reflexo dos yuppies dos anos 80, investidores de Wall Street podres de dinheiro, viciados em cocaína e restaurantes de luxo, que despejavam seu dinheiro inesgotável em roupas de marca e novidades tecnológicas. Ele é a metonímia dessa sociedade, acrescentado o fato de que é um psicopata sádico e canibal, que mata (ou pensa matar, uma vez que todas as mortes podem ser interpretadas como uma forma de delírio, se relativizarmos ao máximo o livro) com a mesma facilidade com que respira.

Um personagem extremamente conturbado e complexo, construído de forma a nos deixar com uma sensação de que ele realmente existe ou pode ter existido em algum momento, e que nos faz refletir sobre a sociedade em que vivemos e como somos mesquinhos, em menor ou maior grau.

(Leitura recomendada para quem tem estômago forte. Sério. Acho que foi o único livro, até hoje, em que fiz careta enquanto lia, tamanha a crueldade e detalhismo de algumas passagens.)