ATENÇÃO, ATENÇÃO! ESSA RESENHA CONTÉM SPOILERS. MUITOS.
Sabe quando você começa a ler um livro, tem uma boa leitura das primeiras páginas e logo se emociona imaginando ter encontrado alguma coisa realmente excepcional? E, depois de algumas páginas, vai murchando ao ler cada vez mais clichês e lugares-comuns e descobre que a história não passa de uma generalidade fantasiada de enredo original? Pois é. Foi mais ou menos assim que me senti ao terminar de ler ‘Who Fears Death?’ (400 p.), da escritora Nnedi Okorafor. Enganado.
A história tem tudo para dar certo: tem uma ambientação originalíssima, personagens interessantes e discussões bem adultas e interessantes para um livro rotulado como Young Adult. A história gira em torna de Onyesonwu – nome que significa o “Quem tem medo da morte?” que dá título ao livro –, uma garota nômade e filha de um estupro exercido por um Naru, grupo que subjuga e escraviza os Okekes (etnia a qual a mãe de Onye pertence), sempre levando em conta os ensinamentos do Grande Livro – estilo Bíblia mesmo, encarada a ferro e fogo. A miscigenação faz de Onye uma Ewu, uma garota de pele morena e cabelos crespos que é olhada com desconfiança por todos pelo simples fato de ser miscigenada. Apesar do preconceito, Onyesonwu logo descobre que possui uma incrível habilidade: pode se transformar em qualquer animal que quiser, e se sente confortável quando se transforma em urubu.
Todo esse pano de fundo, na primeira parte, é incrivelmente verossímil: desde o momento em que Onye chora a perda de seu pai e o faz respirar novamente por alguns segundos (cena que abre o livro) até o momento em que ela descobre a verdade sobre sua origem (em uma das cenas mais emocionantes que já li nesses tempos), você acredita que está com um grande livro em mãos. A história se perde em discussões sobre guerra civil, preconceito, estupro e, mais para frente, circuncisão feminina. Onyesonwu sente na pele a dor de ser a filha de um estupro, de sofrer preconceito por ter a cor da pele diferente e faz de tudo para conseguir se encaixar nessa sociedade de aparências que, mesmo com tão pouco, ainda consegue diminuir o que é diferente.
Até esse momento, a história está naquela classificação de cinco estrelas: a amizade entre ela e outras garotas da vila é desenvolvida direitinho e a gente consegue se afeiçoar aos personagens secundários; o romance dela com Mwita, outro garoto que também é um Ewu, engata aos poucos; a relação mãe-filha vai se expandindo; os flashbacks são bem dosados... enfim, tudo, até mais ou menos a página cem, está às mil maravilhas.
Mas aí, de uma hora para outra, as coisas degringolam de um jeito irremediável: não sei o que pode ter motivado isso, se medo da autora de tentar fazer uma ficção diferente do normal, de não vender livros ou de perder público jovem. O fato é que Nnedi Okorafor não soube dosar muito sua mão na segunda parte do romance, e transformou-o em uma enxurrada de clichês dos quais todos já sabem como vai terminar.
Eis o que acontece: ao descobrir sobre suas habilidades, Onye conhece um mestre através de Mwita, e o garoto diz que ele pode treiná-la para que ela controle melhor seus poderes. Ela tenta, por inúmeras vezes, que ele o treine, mas ele diz que não, não treinará uma mulher. Até aí tudo bem, tudo legal.
As coisas ficam ruins mesmo quando entra na história uma profecia que fala que Onye é predestinada a salvar o mundo. Toda aquela jornada do herói escarrada e cuspida sem nem um polimento ou um disfarce maior começa a partir daí.
É, meus amigos: Onye descobre que não está no mundo à passeio e que possui a predestinação de vencer as forças do mal (muahuahua) que estão do outro lado do continente, estuprando mulheres indefesas da etnia subjugada pelo Grande Livro. Então lá vai ela – depois, é claro, de passar um quarto do livro treinando e falando sobre pontos da mente, alma, corpo, etc e tal – viajar com as amiguinhas e o namoradinho em camelos que atravessam o deserto. Durante a viagem, passam por cidades, conhecem pessoas, odeiam uns, outros morrem, uns desistem. Enfim, RPG básico.
Na segunda parte da narrativa, não há absolutamente nada que me atraiu para continuar lendo: só terminei de ler no modo automático mesmo. De uma hora para outra, os problemas com a circuncisão feminina são resolvidas literalmente à base da magia (o que achei um desrespeito-mor com a discussão séria que desenrolou a primeira parte) e toda a viagem da trupe fica naquela de “Mwita e Onye na barraca, fazendo amor, lalalala” enquanto outros três personagens secundários se enfiam em um triângulo amoroso chato que não contribui em nada para melhorar a narrativa.
Outra coisa que me incomodou MUITO mais para o fim do livro foi a relação de Onyesonwu com a morte: em determinado momento crítico, quando tudo o que Onye precisa fazer é matar alguém, ela se recusa a usar os poderes em prol de um discurso de ‘oh, não, eu não vou me rebaixar e te matar, você pode sofrer mais vivo e eu não sujo minhas mãos, etc e tal’; mas, cinquenta páginas antes, ela extermina UMA PORRA DE UMA CIDADE INTEIRA (inclui-se velhos, crianças e camelos) só porque uma das amigas dela foi torturada por uns caras de lá. Ela entra em uma fúria contra a cidade e dá uma de Deus em Sodoma e Gomorra. Ponto falho, pra dizer o mínimo.
O final também é guiado para um completo anti-climax. O vilãozão-mor (que, aparentemente, faz o que faz por nenhum motivo interessante) só aparece para Onye através de visões – tá, ele se teletransporta ao melhor estilo Goku uma vez bem rapidamente, mas não acho que isso conte – e, quando enfim se encontram pessoalmente, na batalha final, tudo se resolve com um diálogo. Lindo o amor entre heróis e vilões, não é? Desce mais um chopp, simpatia, enquanto eu convenço o filho da puta a parar de acabar com o mundo!
Enfim, se eu pudesse recomendar o livro a vocês, os livreiros não iriam gostar: primeiro, porque vocês não podem arrancar 100 páginas e levar pra casa, segundo porque eles não vão querer que vocês paguem um terço do preço. Então eu digo: arrisquem-se. O livro tem coisas boas, discussões interessantes e umas cenas bem bonitas. Mas não esperem muito do enredo, porque a história não é lá muito diferente do que qualquer coisa que você já viu por aí antes.
Complicado demais quando um livro promete e não cumpre =/
ResponderExcluirMas ele enganou tão bem no começo que eu fiquei com uma vontade de ir lá na casa da autora estourar a cara dela :)
ResponderExcluirMe deixou curioso pra ler pela primeira parte, até por eu ter uma certa predileção por essas histórias meio tribais africanas. Mas é meio frustrante quando um livro broxa assim no meio do caminho...
ResponderExcluirBom, a autora entrou bem no espírito das 30 páginas (o necessário pra ganhar o leitor, depois seja o que Deus quiser). Neste caso, 100... Mas aí está um mérito,apesar de todos os defeitos =P
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