China Miéville chuta bundas. E não digo isso apenas por ele ser um dos principais expoentes do tal new weird, nem por ser extrema e absurdamente criativo, ou por conseguir unir entretenimento, conversa séria e baratas humanoides na mesma história... na verdade, é por isso também, e por mais algumas coisas. Fato é que China é daqueles escritores que sabe muito bem o que está fazendo e faz muito bem, obrigado.

Seu romance mais recente, Railsea (Del Rey, 448p.), é a prova mais recente disso. Afastando-se um pouco da veia séria da trilogia Bas-Lag, esse romance pode se encaixar na categoria young adult; isso, no entanto, não o diminui nem um pouco, principalmente ao se tratar do quesito diversão. Esse é, sem dúvidas, um dos livros mais divertidos que li no ano.

A começar pela ambientação: como o próprio nome do livro sugere, estamos aqui imersos em um universo onde a ação principal se desenrola no ‘mar de trilhos’. Não é nenhuma metáfora ou analogia, mas, de fato, mares de trilhos sobre a terra e piratas que se locomovem em trens e caçam toupeiras subterrâneas. É um western-steampunk-desértico, na falta de uma definição melhor. Nesse universo, somos apresentados a Sham Yes ap Soorap (e minha teoria de que o Miéville bate a careca no teclado e usa o nome que sair só se intensifica), um ajudante do médico embarcado no trem-de-toupeiras Medes, que sonha em seguir sua própria filosofia e não testemunhar a de outros. Ele parte na expedição da capitã Naphi, cuja filosofia (um tipo de preceito idealístico que rege a vida de todos os capitães de trem desse universo) é perseguir e matar Mocker-Jack, a Toupeira de Muitos Significados.

A referência à Moby Dick é clara e escancarada, e o livro é até mesmo vendido como uma releitura do clássico de Melville. No entanto, ele não se resume apenas à caça de Naphi a Mocker-Jack: essa é apenas uma das linhas narrativas presentes no livro. Temos outras, e a mais interessante delas é a do próprio Sham que, ao investigar um trem ‘afundado’ entre os trilhos, descobre uma fotografia do que parece ser uma única linha de trem que, segundo as lendas, leva o viajante até o paraíso e explica como os trilhos foram criados pelos deuses. Consegui enxergar aqui um fundo bastante filosófico na narrativa, de tentar entender origens e significados a coisas estanques que parecem sempre ter estado ali. Para nós, a ideia de que trilhos sempre estiveram ali pode soar absurda, mas é incrível a capacidade narrativa presente no livro que nos leva a acreditar nas crenças dos personagens: estamos lidando com um futuro pós-apocalíptico, depois da era do aço e da era do plástico, quando os homens perderam parte de sua história. Dentro desse contexto, dá pra perceber que, mesmo sendo um young adult (teoricamente, uma literatura – aaargh por falar isso – considerada menor), é possível ser complexo com uma abordagem simples.

Acho que, apesar da referência à Melville, a presença kafkiana no texto é extremamente forte: todos os personagens parecem buscar alguma coisa, mesmo que não saibam exatamente o quê ou por quê. Naphi persegue sua toupeira com a obstinação de um desesperado apenas por que essa é a sua filosofia; Sham tenta descobrir o caminho para o paraíso por altruísmo à missão iniciada em uma geração e interrompida por motivos misteriosos. São impulsos que levam os personagens a se embrenharem em suas aventuras, mas que não objetivam uma finalidade. Lembrei muito de ‘O Castelo’, do titio Kafka, enquanto lia o livro, e não sei se a analogia é válida, mas taí, já fiz.

Aí a coruja subterrânea gigante que eu falei.
Lindona, né não?
Como não poderia deixar de ser, temos uma construção de universo extremamente detalhada por parte de Miéville, com referências históricas ao longo do texto, bem como criação de uma fauna própria e bastante peculiar – com direito a morcegos diurnos, corujas subterrâneas gigantes e ratos pelados igualmente gigantescos. O livro acompanha, na separação de cada uma das seis partes, ilustrações maravilhosas de cada uma dessas criaturas desenhadas pelo próprio Miéville, que são um deleite aos olhos.

É um livro rápido, com capítulos curtos, que muitas vezes brinca com sua própria estrutura. Logo no começo, o narrador descreve um fato para logo dizer ‘não, isso está muito confuso, deixe-me voltar um pouco pra vocês entenderem melhor’. Essa estrutura – divertidíssima, por sinal – repete-se uma meia dúzia de vezes, e sempre em momentos oportunos. Capítulos que começavam com um ponto de vista e, no meio, eram interrompidos pelo narrador, que dizia que aquilo estava muito chato e que partiria para outra linha narrativa mais interessante, sempre me arrancavam sorrisos. Um capítulo, especialmente, não saiu da minha cabeça, por se tratar apenas de uma indagação do tipo: “Podemos ir pra linha narrativa X?”, ao que o narrador respondia “Ainda não”. Simples, eficiente e uma maneira bastante inteligente de aproximar o leitor do texto.

A única coisa que me deixou um pouco com o pé atrás foi o final do livro. É daqueles tipos de final que, até agora, não consegui definir se gostei ou não; é uma alegoria, por mais que China diga que não escreve alegorias, e somos apresentados à explicações que são uma crítica ácida a nossa própria sociedade. É um final eficiente, que funciona muito bem aos propósitos do livro, mas não sei se é do tipo que agrade gregos, troianos e piratas de trens. Mas é daqueles finais que, numa mesa de bar, geram uma bela discussão, e qual é a função de uma história senão ser discutida entre bêbados ocasionais?

Então pegue seu tapa-olho, sua perna de pau, sua garrafa de rum e dê uma conferida nesse livro. Sim, é incrível; sim, é sensacional. Sim, eu quero que traduzam logo pra eu comprar e ter na minha estante e poder emprestar pros meus colegas e mandar eles comprarem. Porque vale bastante a pena.

Esse texto foi escrito sob guitarras psicodélicas e vocais ecoantes de ‘Innespeaker’, da banda australiana Tame Impala, na lista de melhores discos de 2010 que você provavelmente não ouviu.