Existem algumas categorias de livros que se encaixam naquele nicho de “acho que é bom, vou ler e ter uma opinião”; outros vêm naquela de “acho que é ruim, mas vou ler para tentar mudar de opinião”; alguns outros dizem “é ruim e não vou ler, a vida é muito curta”; e muito, muito poucos se encaixam na categoria master-troll da literatura, que diz “é ruim, mas vou ler pelo lulz”. Cinquenta tons de cinza (Intrínseca, 480 p.) se encaixa perfeitamente nesse último nicho – pequeníssimo, por sinal.

Algumas considerações prévias, antes de mergulhar nesse mundo delicioso de pseudo-BDSM, dominação, chicotes e sexo selvagem: eu já sabia que esse livro seria horrivelmente ruim, e até protelei a leitura um pouco mais do que devia. Mas então, em um belo dia de sol, minha partner in crime mineira Ana Carolina Silveira (que já escreveu uma resenha genial que pode ser lida aqui) começou a ler o livro e julguei que ela não poderia passar por todo esse tormento sozinha. Comecei a ler um pouco depois dela e terminei essas 480 deliciosas páginas em três dias, passando todo esse tempo floodando minha timeline do twitter com pérolas de genialidade de E. L. James (aos amigos do twitter, mil perdões). Julguei essa leitura, a princípio, como um ato de solidariedade para com minha tão brava amiga, mas, com o passar do tempo, descobri uma coisa deveras surpreendente: o livro é bom. E é ruim. Na verdade, é bom por ser horrivelmente ruim.

Parece complicado? Eu explico.

Se você ainda não sabe do que trata a história, desembarque da ilha de Lost (referência velha? Talvez...) e procure saber. Vou contar aqui rapidinho uma sinopse tão pamonha quanto o livro: Anastasia Steele, vinte e um anos, virgem e prestes a se formar, conhece um tal Sr. Grey, multimilionário, malhado, romântico, atencioso, dono de um helicóptero, dono de um império construído sem a ajuda ou influência dos pais (AHAM), dentes perfeitos, olhos azuis e pau grande. Em suma, a escultura de Davi (com o pau grande) que toda mulher pediu para chamar de seu. Os dois se envolvem e começam um romance, e é claro que o Sr. Grey tem um quê a mais: ele curte um sado-masô, e convida Anastasia a embarcar nesse mundo desconhecido por ela, com a promessa de enchê-la de prazer. E é basicamente isso. O livro gira em torno desse relacionamento e do desenvolvimento de Anastasia de garota-pamonha-virgem para submissa-sado-masô-libertina. Ou deveria girar.

Não pretendo entrar em méritos sociológicos com essa resenha. Ok, sei que o livro acendeu a chama da paixão de muitas mulheres, sei que tornou alguns relacionamentos mais picantes, que fez as mulheres transarem mais e que talvez tenha revelado todo um novo mercado que se resumia a livros consumidos timidamente em bancas de jornal e lidos na encolha pelas donas de casa, salvaguardados pelas capas cleans que sugeriam romance-romântico quanto na verdade tratavam de romance-putaria. Sei de tudo isso, e talvez você, que esteja lendo isso daqui, também saiba – ou passou a saber agora. E isso, apesar de ser importante de um ponto de vista amplo e de mercado, não é o que pretendo falar aqui.

Quero me concentrar no quão paradoxalmente bom e ruim é esse livro. Ao mesmo tempo.

Vamos à cena inicial – e aqui entra minha primeira opinião: TODAS as cenas que envolvem Anastasia e Mr. Grey são um prato cheio para roteiristas de filme pornô terem um plot para o início de alguma cena. Vem comigo. Na primeira cena, Anastasia – que substitui a amiga-quase-jornalista Kate, doente e desesperada – vai até a Grey Enterprises entrevistar o Sr. Grey para o jornalzinho da faculdade (nesse momento, imagine Anastasia com um óculos de aro preto, uma miniblusa branca de botão e uma minissaia preta, abraçando um fichário cheio de anotações, mesmo que essa não seja a roupa que ela esteja usando naquele momento). Depois de conversar com três loiras estonteantemente belas, que são secretárias do Sr. Grey, ela entra na sala do magnata e, de repente, cai. De quatro.

Pronto, primeira cena do filme pornô pronta: imagino as três louras gostosas entrando na sala, chupando pirulitos e gemendo enquanto o Sr. Grey beija uma, passa a mão na outra com a mão esquerda, arranca a calcinha da outra com a mão direita e monta em cima de Anastasia durante todo o processo. Viu só? É ou não é uma cena digna de um final de Brasileirinhas? E olha que essa é apenas a cena número um!

E as cenas se seguem, todas sugestivas, mesmo quando o sexo não é o ato principal da história: Anastasia chupando aspargos durante um jantar a dois na tentativa fail de provocar/seduzir o Sr. Grey; Anastasia sonhando em ser chicoteada no clitóris por um chicote de couro cru e acordando depois de uma polução noturna feminina (e isso existe?); Anastasia voando com o Sr. Grey em um planador e segurando um freio fálico com as duas mãos na tentativa de manter o planador no ar; Anastasia acordando na casa do Sr. Grey e dando de cara com uma loira estonteantemente bela (outra?) que diz ser governanta dele e prepara um café da manhã debruçada sobre o fogão (sério, essa daria uma bela cena lésbica), etc etc etc... Até o próprio tradutor parece ter dado uma trollada daquelas, repetindo trechos como “pisco para ele” incessantemente (sério, eu não consigo não pensar em ‘piscar’ em outra conotação que não a sexual enquanto lia esse livro). Eu poderia continuar aqui eternamente, puxando situações e descrevendo-as, mas acho que vocês pegaram o espírito da coisa.



Falando em descrição, vamos lá, tenho que ser sincero: já li coisas piores e já vi coisas piores, mas isso não anula o fato de que o texto é ruim. Naturalmente ruim, coisa que nem um copidesqueiro experiente consegue salvar. É claro que não estou falando de nenhum conto do Marcelinho, com erros grotescos de português ou situações esdrúxulas, mas o vocabulário da autora é pobre. Ela repete frases e palavras como se não tivesse a experiência necessária para usar sinônimos; o revisor ou preparador de texto também parecem ter achado que isso não seria um grande problema, mas sim, irrita. Não contei quantas vezes Anastasia “revirou os olhos”, “fez uma careta”, “arquejou”, “mordeu os lábios” ou “franziu o cenho”, mas tenho certeza que foram, no mínimo, umas cinco vezes por capítulo. Também não sei quantas vezes o Sr. Grey falou “o que faço com você, Anastasia Stelle?” nem quantas vezes ele disse “não morda os lábios” ou “agora eu vou te foder” como se ela precisasse de um tutorial. Narrativamente, é um problema bastante enervante, principalmente nas cenas de sexo, que necessitam de todo um clima pra gerar o tal do êxtase (que eu não achei, particularmente. Só achei humor).

Quanto à construção dos personagens, tenho que fazer a tal comparação com Crepúsculo, e vocês já sabem que “Cinquenta Tons de Cinza” se originou de uma fanfic da saga vampiresca e eu não preciso repetir isso. Mas vamos lá: Anastasia me parece muito mais madura do que Bella, talvez pela idade um pouco mais avançada da escritora E. L. James, que constrói uma personagem mais forte, ou pela própria situação em que a protagonista está inserida. Ela ainda consegue se sair melhor do que a pamonha-mor Bella no quesito maturidade. Não se joga nos braços de Grey com a mesma avidez que Bella faz com Edward, mas sim questiona a todo momento se esse relacionamento, por ela visto como disfuncional, vai ter alguma chance de continuar. No entanto, Ana ainda é uma personagem que trai a leitora (coloco ‘a leitora’ por me direcionar ao público-alvo virgem que ainda espera o príncipe encantado como se isso fosse algum tipo de reserva de mercado para virgens recatadas): Ana é uma virgem sem motivo – tem um bonitão atrás dela que ela não quer pegar (José a.k.a. Jacob) –, insegura com o próprio corpo – compreensivo, apesar dela ser bonita e o leitor perceber isso pelas falas de Grey – e pamonha por natureza. Ela ainda acha que encontrará um homem que a fará feliz para todo o sempre, amém. E, se por um lado ela trai a leitora por se mostrar altamente insegura, Grey trai a leitora por se mostrar exatamente o que Ana espera que ele seja: educado, rico, malhado e pau grande. Dá até para entender que ele se encante pela pamonhice dela – afinal, ele está atrás de uma Submissa para dominar –, mas fica difícil para o leitor engolir um cara que te compra um carro, te dá um armário novo quando você fala que não tem calças, viaja meio país depois que você manda um e-mail malcriado e te compra uma passagem de primeira classe só porque pode. Ele é destituído de defeitos – além da predileção pelo sado-masô (visto por ela como um defeito) e pelo silêncio ao seu obscuro passado. Fora isso, é o homem-perfeito-que-mamãe-pediu-a-Deus. Talvez, se ele fosse um pouco mal-humorado de vez em quando e tivesse problemas de gente grande, o romance pudesse soar um pouco menos artificial e gratuito.

Falando em gratuidade, vamos dar destaque à gratuidade do sexo. Sim, o livro demora para a primeira cena de sexo aparecer – e eu já li um blábláblá imenso sobre ‘como mulheres precisam se envolver em uma história para acharem sexo excitante, diferente de homens, que apenas absorvem as imagens e gozam irracionalmente’. Mentira. Mulher também gosta de putaria imagética, assim como alguns homens gostam de histórias. Não é questão de biologia, mas de gosto pessoal. Tanto que, uma vez que a história engrena (depois que Grey a salva de uma balada e a leva de helicóptero até seu prédio – oh, jeito romântico de falar que é podre de rico e quer comê-la!) praticamente TODOS os capítulos têm uma cena de sexo. Eu sei que era uma fanfic e que era quase uma regra ter cenas de sexo para a coisa se tornar interessante ao leitor à época em que ele foi publicado, mas é tudo muito gratuito: Anastasia está lá, Grey fala “eu vou te foder” e lá vamos nós pra putaria. Com os mesmos três adjetivos e as mesmas três expressões de sempre. As variações são mínimas, geralmente de cenários e situações, mas a história estanca. O desenvolvimento, a partir do momento em que o sexo entra na jogada, simplesmente inexiste. Mas eu entendo: é uma trilogia, E. L. James precisa vender mais livros, então ela engrossa a quantidade de informação inútil. Jogada mercadológica, sem dúvida.

Algumas outras coisas que gostaria se comentar: primeiro, verossimilhança. Quando disse que Ana acaba enganando a leitora, estendo isso diretamente à cena que ela perde a virgindade. Ok, algumas meninas virgens podem ler o livro e achar que gozar três vezes seguidas na primeira vez em que fazem sexo pode realmente acontecer. Minhas palavras para elas: HA HA HA. Não, meninas, não se iludam. Eu posso não ser mulher, mas, se acontecer o mesmo que aconteceu com Anastasia Steele na sua primeira vez, considere-se a mulher mais sortuda de toda a raça humana. Ana pode ter orgasmos múltiplos, ser hipersensível ao toque e os caralho a quatro, mas simplesmente É IMPOSSÍVEL dar três gozadas na primeira vez. Simplesmente. Não. Rola.


Outra cena que cai nessa de verossimilhança é a do Sr. Grey saber O DIA EM QUE ELA FICA MENSTRUADA. Como assim, leitores? Ela tá lá, ralando na boquinha da garrafa de calcinha, e ele pergunta DO NADA: “Você está menstruada?”. Como assim? Ele sente cheio agora? É vampiro? (será que é resquício de Crepúsculo que o editor não viu?). Por mais control freak que o cara seja, saber o dia em que a mulher está menstruada barra qualquer expectativa de controle de atos biológicos femininos.

Outra coisa: diálogos estranhos. HUHAUHAUHAU. Sério, o livro é cheio deles. Coisas bastante estapafúrdias, diálogos que talvez você possa ter com seu cachorro e ele te reprima pela retardadice. Amostras:

1)      - Nossa, seu quarto é grande.
- Grande?
- Grande.
- É, é grande.

2)      Sinto meu rosto ficar novamente vermelho. Devo estar da cor do Manifesto Comunista.

3)      - Você é familiarizada com sexo anal?
- Não.
- Seu cu vai precisar de treino.

4)      - Eu não faço amor. Eu fodo. Com força.

E por aí vai. Pérolas que são muito raras para merecer ser lidas por nós, reles mortais.

Mas pra ninguém me chamar de ranzinza e falar que sou um mal-amado, o livro tem exatos dois momentos de profundidade psicológica: o primeiro de Anastasia e o segundo dos dois personagens. Na primeira vez, temos uma confusão de sentimentos que atinge Ana depois de receber sua primeira surra de punição por desobedecer a uma das regras de Grey: ela se sente ao mesmo tempo enojada, humilhada, triste, excitada e importante. A enxurrada de sentimentos que a acomete é realmente bastante verossímil e E. L. James consegue guiar essa parte muito bem, até o momento em que caga tudo quando traz Grey de volta à ação, consolando Anastasia com outra sessão de sexo gratuito (que eu chamei de ‘surra de pica’). Na segunda vez, a profundidade vem através de uma troca de e-mails dos dois, onde ambos expõem seus sentimentos e falam sobre como acham que o relacionamento pode ou não funcionar. É um texto frio e formal, como é a maior parte dos e-mails entre eles, mas os dois conseguem expressar sentimentos de uma forma que, até então e até o final do romance, não conseguem mais.

Outro ponto que TENHO QUE citar: WTF essa playlist dessa E. L. James, hein? Porra, o sonho do Grey é transar ouvindo música sacra do século XVI? Como assim?!

Com tudo isso que falei, você talvez esteja se perguntando: “então você está me dizendo que o livro é ruim e não deve ser lido?” NÃO! Muito pelo contrário: leia essa história. Não, esse não é um post patrocinado e a Intrínseca não está me pagando um centavo, mas eu TENHO QUE recomendar esse romance pra qualquer um que eu encontre pela frente. Foi, de longe, a melhor leitura que fiz no ano. Não pelos motivos certos, é claro: se era para me fazer sentir qualquer frêmito de erotismo, nada feito. Mas, para vias de humor, ele é MUITO bom. Tenho a teoria de que livro ruim a gente lê rápido, e esse não é exceção. Se eu, que sou uma toupeira lerda pra ler, demorei três dias, imagino que qualquer pessoa mais ágil leia em dois ou, quem sabe, em um. E juro, JURO, vai ser uma boa leitura. Pelo humor involuntário, mas uma boa leitura.

PS:. enquanto lia o livro, essa música não saía da minha cabeça.