Em tempos de Nelson Rodrigues, nada melhor do que fazer uma resenha sobre um anjo pornográfico. Devo confessar que estou relapso com minhas resenhas – tenho mais lido do que escrito sobre o que li –, mas prometo pra qualquer deus em qualquer plano superior que tentarei melhorar meus (maus) hábitos. Já li “Gabriel” (Editora Draco, 304 págs) há coisa de um mês, e só agora bateu a vontade de escrever minha singela opinião sobre os escritos de Claudio Parreira.

Em primeiro lugar, tenho que destacar que esse é um daqueles livros que vai te tirar da sua zona de conforto. Não apenas por se tratar de uma releitura de personagens célebres na mitologia cristã e por balançar alguns alicerces da concepção religiosa de muita gente, mas por mostrar com pinceladas de realidade – mesmo que o texto tenha seu tom fantástico – a decadência da contemporaneidade e todo o jogo de cintura que os personagens tradicionalistas têm que ter para conseguir se adaptar ao tal do mundo moderno.

Mas vamos à sinopse: explicando em breves linhas, acompanhamos a história do anjo Gabriel, o mesmo que anunciou há uns dois mil e doze anos atrás a chegada de Jesus Cristo, que tem a missão de voltar a Terra e repetir a mesma história de antigamente, mesmo a contragosto. Para Gabriel, os planos antiquados do Superior de repetir a história não vão levar a nada, mas lá vai ele, munido de suas asas tortas e suas opiniões, de volta a Terra para anunciar à Maria – encarnada na forma de uma puta – que ela será a progenitora do novo Salvador.

Polêmica? Confusão? Livro demoníaco? Nada disso. Claudio Parreira faz muito bem em utilizar seus personagens apenas como personagens e não entrar em discussões religiosas profundas que abalarão as estruturas da fé humana. Prefere, ao invés disso, dar voz aos anseios de um anjo que se humaniza ao longo da narrativa e vai sentindo na pele todo o terror que é voltar a conviver com humanos. Essa opção do outsider cai como uma luva dentro da narrativa, porque consegue estruturar muito bem as etapas que vão de estranhamento à familiaridade e se transformam em insatisfação. A metamorfose de Gabriel (meio na marra), de anjo subserviente à homem questionador, é sem dúvidas uma das melhores características da narrativa.

O texto é limpo, os capítulos são curtos e se concentram em diálogos, sempre ácidos e bastante desprendidos de pudores. Gostei muito do clima cinzento e urbano da narrativa, que usa palavrões, brinca com arquétipos (como o homossexual afetado apaixonado por Marilyn Monroe, o poeta bêbado e o padre insatisfeito com o celibato) e, mesmo em um espaço tão pequeno quanto o da cidade onde a narrativa se passa, consegue criar um ambiente tão propício à exploração. A utilização do mapa que indica os principais pontos da diminuta cidade pode parecer um exagero à primeira vista (afinal, são só quatro ou cinco pontos estratégicos durante todo o romance), mas funciona perfeitamente quando vamos avançando na história e descobrindo que a cidade nem sempre é o que parece.

Outro ponto que vale a pena destacar é o da subversão de valores, da troca de papéis entre bom, mau e neutro e de como isso, ao longo da narrativa, vai se tornando cada vez mais interessante. Não há espaço para figuras apolíneas e renascentistas em “Gabriel”; ao invés disso, somos pegos por descrições sujas, decadentes, envoltas em nicotina e marcas de cicatrizes, com um passado borrado de batom vagabundo e cachaça barata. Os personagens são tão cinzas quanto a cidade em si e, apesar disso, ainda conseguem nos transmitir sensações boas como esperança e perseverança para enfrentar os problemas que são impostos pela vida.

Fiquei realmente satisfeito com a leitura de Gabriel. Ela passou rápido, entre engarrafamentos e noites insones. Para mim, pseudo-agnóstico e cem por cento sincrético, criado em uma família estritamente católica e com uma visão completamente catolicista do mundo (que inclui, paradoxalmente, um quê de intolerância e outro quê de amor ao próximo), o livro foi altamente divertido. Pude rir com todas as situações éticas impostas a Gabriel e à forma como ele lidava com elas, perdendo sua carapaça de anjo-bondoso-e-benevolente e agindo como qualquer um agiria: com humanidade.

Esse texto foi escrito sob distorções, gritos e psicodelias de “Violent Waves”, disco mais recente do Circa Survive. O disco foi produzido por crowdfunding e gravado em três dias; o arquivo de download foi disponibilizado gratuitamente pela banda (nada mais justo). A capa é uma das coisas mais lindas que vi nesse ano. O som, um dos melhores que ouvi.