Ler um bom livro nacional é sempre um prazer. Não é papo tropicalista nem bravata de identidade brasileira impressa na literatura. Não. Muito longe disso, é apenas um prazer maior que faz brotar aquele pequeno sorriso e nos faz pensar “sim, temos qualidade em meio a tantos livros medianos; sim, temos romancistas tão competentes quanto os gringos; e sim, fazemos literatura de entretenimento mostrando realmente quem somos como escritores e como pessoas”. Talvez o maior mérito de “Suicidas” (Benvirá, 488 p.), do escritor e amigo Raphael Montes, seja exatamente esse: o de ser um ótimo livro de entretenimento, que não se prontifica a explorar os meandros da natureza humana nem de montar um jogo narrativo complexo que se sobrepõe à história. Aqui, o principal é o enredo, e toda essa exploração de personagens e narração é consequência de uma boa história que precisa ser contada.

Vamos à história. Um ano após o suicídio coletivo de nove adolescentes de classe média alta do Rio de Janeiro – que aparentemente não possuíam nenhum problema maior do que pegar o metrô até a faculdade e se preocupar com o trabalho de Foucault pra entregar na próxima aula – a polícia, na figura da delegada Diana Guimarães, reúne as mães desses jovens para discutir o caso à luz de uma nova prova: um diário, escrito em tempo real por um dos jovens, que narra os acontecimentos sucedidos durante a fatídica noite em que as mortes aconteceram. Através dessa reunião carregada de tensão e a leitura desse diário, verdades inconvenientes e segredos serão revelados.

É uma sinopse promissora, e o livro cumpre muito bem o que promete. Temos três narrativas paralelas: as anotações cotidianas do jovem Alessandro, que almeja ser escritor e mantém um diário com os principais acontecimentos à sua volta; o diário em tempo real do adolescente, encontrado pela polícia no porão onde os adolescentes se mataram; e a gravação da reunião das mães dos adolescentes. Essa escolha, que alterna diversos tempos narrativos e parte para uma escrita não linear, possibilita que o livro vá revelando segredos aos poucos, instigando o leitor a continuar lendo para que entenda o que diabos aconteceu naquele porão e porque esses adolescentes resolveram se matar.

Montes é habilidoso com as palavras: elas parecem dosadas para revelar apenas o que querer dizer ao mesmo tempo em que deixam algumas pistas que podem auxiliar o leitor a montar o quebra-cabeça que pouco a pouco vai se delineando para explicar o acontecido. Os personagens são muito bem montados: conseguimos identificá-los mentalmente apenas pelo nome, e suas atitudes são muito mais relevantes do que suas breves descrições físicas. O autor prefere um texto carregado em diálogos e dá pouco espaço para descrições, salvo nas partes mais gráficas do texto, que acontecem principalmente na narrativa do diário em tempo real. Isso faz com que as mais de 400 páginas do romance passem quase despercebidos por quem lê. O livro é um baita de um pageturner, sem dúvidas.

Uma coisa que achei bem interessante no livro foi o de se desprender de pudores ao mostrar a vida desses adolescentes. São, como grande parte dos adolescentes de classe alta carioca, arrogantes, preconceituosos, meio estúpidos e superficiais com os problemas que cercam o mundo. São cheios daquele discurso de “Brasil, país das bananas” e “Subornar um policial fácil assim só no Brasil”, sem tentar se aprofundar muito nas questões que levam as coisas a serem como são – mesmo que quatro personagens estudem direito. Essa opção, no entanto, é bastante acertada: demonstra toda a empáfia dos personagens, que se acham superiores aos outros apenas por terem mais dinheiro e uma educação privilegiada. Os únicos que conseguem ter um equilíbrio maior nessas questões são Waléria (única não-rica do grupo) e o protagonista Alessandro, que tenta se desvencilhar da postura de ‘riquinho nariz em pé’ em grande parte da narrativa.

Não há muito o que falar do enredo sem acabar caindo em algum spoiler, mas se há uma qualidade que esse livro possui é o de ter sempre alguma coisa nova a apresentar para o leitor. Até que toda a história comece a se montar, são necessárias menos de trinta páginas; para pegar o leitor preso num vórtice narrativo, trinta e cinco. Logo, o livro te pega pelo pé e te obriga a virar a próxima página para mais explicações. Os capítulos das anotações cotidianas de Alessandro são, talvez, a parte mais tranquila da narrativa, mas é essencial para dar todo o panorama externo ao sótão onde ocorre a ‘brincadeira’ da roleta-russa e explicar a vida de cada um dos personagens que está lá dentro.

Outro fato importante é o de que o livro é narrado sob a ótica de um personagem. A escolha da narração em primeira pessoa cai como uma luva no texto: não raro nos pegamos odiando os personagens que Alessandro odeia e admirando os que ele admira. Ele é a câmera que guia nossos olhos ao longo da narrativa, e partilhar as memórias com ele nos faz compartilhar das emoções que ele sente. Se ele diz que Waléria é uma vaca arrogante, acreditamos nele; se diz que Otto é um mentiroso, também acreditamos e, quando alguma coisa abala Alessandro, nos abala também. Ver os personagens sob a ótica pessoal de um dos que participa da roleta-russa é essencial para que os mistérios desse livro sejam dissolvidos aos poucos para o leitor, que tem Alessandro como catalisador de sentimentos.

Falar do desfecho seria estragar o romance, portanto não o farei. Só tenho a dizer que a história possui um fim extremamente satisfatório a todo o mistério sustentado quase até os últimos capítulos, quando enfim revela, de uma forma muito bem pensada – não espere o vilão relevando todo o seu plano maligno antes de perder a arma e morrer no final – todas as explicações necessárias para fechar o caso. Há uma ou outra ponta solta, mas nada que prejudique o entendimento do romance e a sensação de que uma ótima história foi contada.

Raphael Montes estreia de forma extremamente competente nesse primeiro romance: visceral, intenso, gráfico e violento são alguns dos adjetivos que posso usar para qualificá-lo. É um livro que vai te obrigar a chegar ao fim e vai te dar um ótimo final para uma ótima história, que parece ter sido planejada nos mínimos detalhes para chegar até você, leitor. É sua obrigação não deixar de lê-lo.