Ler clássicos sempre é um desafio a ser superado. Não pela linguagem, pelo estilo ou pelos anacronismos que certamente permeiam, sobretudo, a ficção científica; mas pela oportunidade de tentar compreender como determinada obra se tornou um cânone e de que forma isso influenciou ou influencia as gerações descendentes dela. Comprei um livro do Harold Bloom que discute a invenção do cânone e como ele é determinado – para Bloom, cânone são “os livros escolhidos pelas nossas instituições de ensino” (e eu o vejo falando isso com a maior troll face do universo). É claro que isso é uma piadinha academicista; o cânone, para mim, é tudo aquilo que possui força suficiente para influenciar ou determinar estilos de trabalhos futuros. Nesse sentido, Philip K. Dick se destaca por ser um dos mais canônicos escritores de ficção científica que já andou entre meros mortais.

Quem já viu “Blade Runner – O Caçador de Androides” deve ter alguma noção sobre o tema central desse livro, que originou o filme. Mas não pensem vocês que o filme é a representação fiel do livro, porque nesse caso a palavra ‘adaptação’ tem todo o seu peso. O filme mostra apenas uma parte da trama e, por mais bonito e filosófico que seja, não está nem um pouco próximo de todas as questões que perpassam a vida do protagonista Deckard no livro.

Àqueles que não sabem do que se trata essa história, uma breve sinopse: na história, acompanhamos a aventura de Rick Deckard, um caçador de recompensas vivendo em uma San Francisco pós-apocalíptica de 1992, onde a maior parte da população partiu para Marte e a Terra não passa de um lugar inóspito, carregado de partículas nucleares e prédios abandonados. Deckard assume o caso de Dave Holden: caçar seis androides Nexus-6 que estão se passando por humanos na Terra. Os ecos do pessimismo da Guerra Fria são mais presentes do que nunca no romance, e o fator contexto histórico deve ser bem observado pelos mais novos: guerra nuclear, corrida espacial e colonização de Marte, carros voadores... tudo nessa ficção científica ecoa aos anos sessenta.

Em paralelo, temos a história de John Isidore, um homem que permaneceu na Terra por não ter demonstrado possuir QI suficiente para viajar até Marte. Conhecido por ser um chickenhead (alguma coisa como ‘cabeça de vento’ em uma tradução bem porca e apressada), Isidore vive em um prédio abandonado, onde acha que está sozinho até ser interceptado por uma mulher atraente, a qual ele, diferente do leitor, demora para perceber que é um androide (e se você acha que isso é spoiler... bem, acho que você é tão chickenhead quanto ele).

Muitas questões são levantadas durante o livro: religião, alienação, status social e, majoritariamente, a humanidade dos personagens. A sacada de K. Dick é genial. Os Nexus-6 são criaturas desenvolvidas não como robôs – com fios, painéis de controle e aço inoxidável –, mas sim como criaturas orgânicas que possuem memórias implantadas para acharem que são realmente humanos. Onde começa e termina a humanidade de cada um? O que define quem são os humanos e os androides, quando tudo o que os diferencia é o tempo de vida reduzido das criaturas sintéticas? Não há respostas no livro: Deckard, por ser os olhos do leitor, passa por um processo de desconstrução que começa com ele dando pouco valor aos androides e se desenvolve com questões que o colocam em cheque, e o relacionamento dele com os androides vai pouco a pouco saindo do campo do desprezo para o de se colocar no lugar deles e tentar entender o que eles sentem – porque, afinal de contas, eles sentem, não é?

A religião é um dos pontos centrais e mais explorados da narrativa. Com a guerra nuclear, praticamente todos os animais que viviam na Terra foram ou extintos ou reduzidos a um número próximo da extinção. Com isso, os poucos que sobraram passaram a ser comprados e idolatrados como parte integrante de uma nova religião, chamada Mercerismo. Quem não tem dinheiro para comprar um animal vivo, mas ainda quer manter as aparências, pode adquirir um elétrico por um precinho camarada e ninguém precisa saber. E o animal, agora parte de seu cotidiano, passa a ser a coisa mais importante que existe em sua vida. Deckard ama mais sua ovelha elétrica do que sua esposa, K. Dick diz em um momento do romance. O animal real, que um dos personagens adquire ao longo da trama, passa a ser idolatrado como hoje idolatramos uma nova tecnologia que não sabíamos que precisávamos. Essa crítica ao consumismo, à idolatria e ao poder do dinheiro, de fazer novos ídolos e elevá-lo ao status divino pelo preço que valem dialoga bastante com o que acontece hoje – com o que acontece desde sempre. Ponto para Dick.

Não sei se há algum ponto negativo que possa citar. Diferente de “O Homem do Castelo Alto” – ao qual tenho algumas ressalvas, não sei se por ter lido uma tradução mal-feita dos anos 90 ou se por não ter de fato gostado da história –, ‘electric sheep’ é um romance completo e sucinto. Suas 256 páginas passam rapidamente, com a dose certa de ação e contemplação. É uma história que todos – principalmente aqueles que curtiram o filme – devem ler.