Já é senso comum: quando peço para alguém pensar em uma bibliotecária – sim, uso o designativo feminino pelo simples fato de que muita gente pensa que não existem homens nesse campo profissional – a imagem é sempre a mesma: velha, com coque e óculos, mal-amada e amargurada, que vê no silêncio da biblioteca um refúgio para sua cabeça cheia de problemas que envolvem processamento técnico, obsessão por organizar os livros nas prateleiras e atender mal aqueles que vão à biblioteca, porque sim, “usuário bom é usuário morto” – um discurso tão cruel e, ainda assim, tão presente. Poderia me aprofundar um pouco mais na visão social negativa que existe do bibliotecário para com o público, mas prefiro me ater a um ponto-chave: o silêncio. Sim, o famigerado shhh tão característico das bibliotecárias-velhas-de-coque-e-óculos-de-grau.

Sim, essas bibliotecárias existem – e, para pavor dos bons profissionais, não precisam ser velhas nem ter coques para estarem de mau humor vinte e quatro horas por dia e descontarem tudo nos usuários –, mas vou te dizer uma coisa: na maioria das vezes, o shhh não vem delas. O shhh, na verdade, é uma prática muito pouco difundida entre bibliotecárias. Os especialistas em shhh são, na verdade, os próprios usuários da biblioteca.

“Preciso de silêncio para estudar”; “não consigo ler com barulho”; “estou aqui porque é o lugar mais silencioso que encontro para estudar” são chavões que ouço todo dia no estágio. Vem, na maior parte das vezes, dos famigerados concurseiros – esses seres sem vida social que gastam de 8h a 10h horas por dia na biblioteca, estudando, estudando e estudando um pouco mais com intervalos regulares e bem regrados de sono e alimentação. Pois então. Concurseiros são tão bem-vindos na biblioteca quanto qualquer outro tipo de usuário. Mas, por serem assíduos, tem um certo senso de apropriação da coisa pública – ou, no meu caso, privada –, como se a instituição que usam para ler seus livros-tijolos fossem sua propriedade e qualquer peculiaridade ao estado normal do lugar fosse uma ofensa aos seus intensos estudos.

Trocando em miúdos: eles pensam que o lugar é deles e que ninguém além deles merece estar lá.

Operação silêncio na biblioteca: eu não apoio
Eu sei, é um pouco cruel falar isso de pessoas que se empenham tanto com o objetivo de ter uma vida financeira estabilizada. Mas também é cruel quando eles imputam à biblioteca esse senso de apropriação. “Estudar na biblioteca pública? Claro que não, que absurdo! Outro dia eu fui lá e tinha um grupo cantando, você acredita nisso?”. Claro que acredito e vejo nisso um ponto muito positivo. Estranho seria se a biblioteca fosse um mar de silêncio e pessoas com os livros enfiados na cara, olhando torto para qualquer um que desse um passo um pouco mais pesado do que o aceitável (por eles). E a função social de levar a biblioteca àqueles que pouco se interessam por ela, onde fica? E todo o processo de transformar cidadãos em cidadãos-leitores que tanto se ouve por aí nas mídias de massa? A biblioteca pública da cidade onde trabalho é a coisa mais sensacional do mundo: crianças correndo, adolescentes conversando, pessoas mais velhas fuçando prateleiras de biografias e romances, grupos estudando e batendo papo... enfim, um ambiente vivo que deve ser incentivado e não deve ser relegado à prática do shhh.

Lembre-se: biblioteca é lugar de troca
Porque sim, o shhh é maléfico. O shhh impede que o ambiente de troca aconteça e que as pessoas aprendam umas com as outras. Bibliotecas não nasceram como lugares silenciosos. Nasceram como ambientes voltados à discussão e ao aprendizado, e assim deveriam continuar sendo. Como praças públicas. Como antessalas de teatro e filas de mercado. Um lugar para conversar e trocar experiências, não para o usuário vir de mau humor ao balcão da bibliotecária e dizer “essas crianças estão falando muito, não dá pra fazer alguma coisa não?”. Chegará o dia em que a bibliotecária terá o prazer de olhar para esse tipo famigerado e dizer não. Por que o direito que ele tem de falar deveria estar subjugado ao direito do silêncio? Por que o estudo obsessivo por códigos jurídicos não deve ser incomodado e a troca de experiência deles deve? Por que o direito – individual – do concurseiro deve ser superior ao direito – coletivo – das crianças? São questões que precisam ser reavaliadas e levadas em consideração. Por que sim, estudo necessita de silêncio, mas incentivo e transformação da visão de mundo necessita de – muito – barulho.