Escrever uma opinião sobre o segundo livro de uma série é sempre muito difícil. Há aquela preocupação em não soltar spoilers, em não acabar falando mais do que devia e, ao mesmo tempo, tentar passar todas as sensações que a leitura me proporcionou. Escrevo esse texto em um momento eufórico, onde acabei de fechar o livro e corri imediatamente ao Word, tomando todo o cuidado necessário para não encher a caixa de e-mails do autor com pedidos e mais pedidos de TRANQUE-SE EM CASA, ESCREVA OS PRÓXIMOS LIVROS E SÓ VOLTE A VER O SOL QUANDO TERMINÁ-LOS!

Pois é. Foi exatamente assim que me senti quando terminei de ler “Prata, Terra e Lua Cheia” (Editora Gutenberg, 272 págs), do escritor paulista Felipe Castilho: com sede de quero mais. E isso já diz bastante sobre a história, que se constrói com um cuidado extremamente acertado no tom dos personagens e no desenvolvimento do enredo. É um daqueles raros livros que você só larga quando termina de ler e fica aflito quando acaba, esperando ansiosamente pela continuação.

Mas voltemos um pouco e vamos explicar sobre o que estou falando para aqueles que não tem a mínima ideia de quem é Felipe Castilho ou o que é a série que ele escreve. “Prata, Terra e Lua Cheia” é o segundo romance da série “O Legado Folclórico”, que teve como primeiro livro “Ouro, Fogo e Megabytes” – cuja resenha pode ser lida aqui. Os livros tem como protagonista um garoto nerd de 12 anos chamado Anderson Coelho, que mora no interior de uma cidade fictícia de Minas Gerais. Anderson é um garoto que prefere jogar RPG ao contato social, mas repentinamente se vê envolvido com uma Organização ambientalista e uma série de criaturas que, até então, nunca foi capaz de enxergar. No primeiro volume, Anderson enfrenta uma cuca, um grupo de capelobos e um boitatá gigante, entre outras feras presentes no folclore nacional.

Mas isso é o volume um e não estou aqui para falar dele. Então vamos ao que interessa.

No segundo livro, Anderson é novamente contatado pela Organização para embarcar em uma nova aventura: dessa vez, em uma ilha criada há muitos anos pela Iara e pelo Grande Caipora, com o objetivo de dar um fim às disputas territoriais entre o homem branco e os indígenas que viviam naquele pedaço de terra que outrora fizera parte do continente. A ilha, chamada Anistia, passou a ser palco de uma disputa que acontece periodicamente entre Organizações secretas e, por conta disso, Anderson é convocado a participar da próxima peleja. No entanto, mal sabe ele que os perigos que pode encontrar na ilha são muito mais mortais do que os que ele imagina.

No segundo volume d’O Legado, temos de volta uma série de personagens que deixaram saudades ao fim do volume um – entre elas, uma capivara que acha que é cachorro e uma arara falastrona. Esse sentimento de retorno é sempre muito bom, e me surpreendi ao perceber que, mesmo não tendo lido novamente o primeiro livro antes de começar o segundo, lembrei de praticamente todos os personagens que estavam presentes em “Ouro, Fogo e Megabytes”. Também somos apresentados a novos rostos, como o de uma metamorfa chiliquenta e um showman de programas de sobrevivência. O leque dos personagens é extremamente diversificado e, mesmo que algumas vezes eu tenha ficado um pouco perdido com a quantidade deles – principalmente no momento em que Anderson chega à ilha de Anistia –, aos poucos eles vão sendo desenvolvidos e digeridos pelo leitor, que passa a ter todos como companheiros.

Outra coisa que tenho que comentar é a ação praticamente incessante ao longo da história. O jogo que Anderson participa me remeteu imediatamente a Jogos Vorazes e Battle Royale. A comparação não nasce à toa: Anderson é incessantemente colocado à prova, tendo sempre sua vida posta em jogo para que possa continuar lutando por ela. Entre lobisomens e muiraquitãs, o protagonista passa por alguns apertos inacreditáveis e, quando acha que escapou de um problema, sempre aparece um maior para preocupá-lo mais (e o livro possui a melhor estratégia narrativa de um deus ex machina desde Scott Pilgrim). Os momentos de tensão estão dispersos ao longo de toda a narrativa, o que prende o leitor para sempre querer virar mais páginas e saber se o pescoço de Anderson sairá ou não ileso dali.

A utilização da mitologia continua ótima. Castilho possui o poder de manipular as lendas folclóricas – muitas vezes identificáveis a nós apenas pela obra de Monteiro Lobato – e devolvê-las ao leitor de uma forma completamente surpreendente e nova. Sem se preocupar com a sonorização de um nome indígena (que, para a maioria das pessoas, não é tão bonito quanto um nome europeu) ou com a utilização de criaturas oriundas da mitologia local, ele é muito feliz ao apresentar para o leitor seres que, à primeira vista, podem parecer pouco usuais ou sem graça, dando a elas uma roupagem por vezes soturna, por outras cômica, mas sempre levando em conta a adequação ao universo proposto por ele e a como determinada criatura pode se encaixar para dar mais movimento à narrativa.

Quanto às escorregadas de revisão, a editora parece ter tomado um cuidado dobrado para evitá-las ao máximo neste segundo volume. Vi apenas uma vírgula aqui e ali que eu suprimiria ou mudaria de lugar para dar mais fluidez ao texto, e não por estarem erradas; ponto para a preparação de texto da Gutenberg.

A capa continua seguindo o mesmo estilo (lindo) do primeiro volume, com o detalhe metálico no título que faz qualquer um que passe por uma livraria ficar com os olhos brilhando para ter o livro logo em mãos. Por dentro, o padrão de ilustrações por capítulo continua igual, com imagens que emulam xilogravuras belíssimas sobre a história.


Erros, defeitos, reclamação com a gerência? Sinceramente, nada muito relevante. Acho que a única coisa que me incomodou momentaneamente foi a quantidade excessiva de personagens no segundo terço do livro, mas isso logo foi sanado ao longo da história. Wagner Rios, o vilão, continua muito bem colocado e, neste livro, ganhou profundidade; Anderson também, com todas as suas escolhas éticas e as consequências que viu e ainda verá nos próximos volumes, foi um personagem construído com o intuito de cativar os leitores: por vezes chato, por outras extremamente inteligente, ele é o herói certo para o tipo de aventura que vive. Gostei particularmente da inserção da realidade dos sonhos/mortos, levando em conta todas as possibilidades que ela pode trazer para os próximos volumes.

Como destaque, posso citar as cenas dos lobisomens como as melhores do livro, tanto nas transformações quanto nas perseguições e na violência muito bem colocada para atingir um público mais novo e sedento por porradaria. O livro é excelente tanto para o público mais novo quanto para o mais velho. Anderson é um protagonista extremamente crível para um pré-adolescente esperto e cheio de fôlego para encarar aventuras.


O saldo final do livro é extremamente positivo. Ele consegue misturar ação, mitologia e diversão na medida certa para não ter em nenhum momento um tom chato ou pseudo-moralista. E CADÊ O VOLUME TRÊS?! (sem pressão, sem pressão...).