O demônio sempre é pintado como um ser astuto, calculista e despreocupado com as emoções humanas, pronto para te sacanear no momento em que você firmar algum acordo com ele. Geralmente, é um ser que se apresenta com a coloração de pele avermelhada, cavanhaque enrolado no queixo, um tridente em mãos e cheiro de enxofre ao seu redor.

E, é claro, os chifres.

Em seu segundo romance, “O Pacto” (péssima tradução, por sinal, de um livro originalmente entitulado “Horns” – ‘chifres’ ou ‘cornos’, em uma tradução livre), Joe Hill nos apresenta a Ignatius Perrish, um cara que sempre tentou viver sua vida dentro das regras. Tudo estava muito bem, obrigado, até o dia em que a namorada de Ig, Merrin, é estuprada e assassinada e ele passa a ser considerado o principal suspeito do crime. Por ser de uma família abastada e contando com a ajuda do irmão – um famoso apresentador de TV –, Ig consegue se livrar das acusações da polícia, mas não da desconfiança de todos aqueles que o cercam.

Um ano se passa e Ig resolve comemorar o aniversário de morte de Merrin bebendo como um gambá e indo até o pequeno memorial criado no local em que ela morreu. Depois de mijar sobre a imagem de uma santa e fazer mais algumas coisas das quais não se lembra, Ig acorda no dia seguinte com uma dor de cabeça infernal e o que parece ser um par de chifres em sua testa. Ao olhar-se no espelho, Ig se intriga: como diabos aqueles chifres foram parar ali?

Toda a dúvida parece ficar em segundo plano quando o rapaz descobre para que servem aqueles chifres: quando as pessoas estão sob a influência dos cornos, deixam todas as suas inibições de lado e começam a contar detalhes sórdidos de suas vidas, bem como seus desejos mais íntimos e suas facetas mais surpreendentes, como se estivessem conversando com um demônio particular e pedindo orientação sobre qual seria a forma mais correta de agir. Quando vemos um personagem sofrer esse tipo de influência, que se alterna entre um estado momentâneo de hipnose e um momento de entrega total de sua natureza humana mais crua e visceral, não podemos deixar de nos identificar com toda a sinceridade dos discursos, toda a crueldade implícita nas palavras, no ser humano livre de suas amarras sociais e de sua autocensura, um pouco como nós mesmos e todos aqueles pré-conceitos que parecem já vir impregnados em nossa natureza humana. Incrível.

O texto de Joe Hill se alterna entre diversos pontos de vista: temos a história presente de Ig, mostrando a evolução gradual de seus chifres, dos poderes que eles carregam e a forma com a qual ele se utiliza deles para ajudá-lo a desvendar o mistério que cerca o assassinato de Merrin; o ponto de vista do passado, mostrando como Ig e Merrin se conheceram e como Ig veio a se tornar melhor amigo de Lee Torneau, um garoto com um sério problema para achar graça em piadas ou fazê-las usando a entonação correta, que mais tarde acaba por se tornar um importante político local. Todo o texto casa muito bem com o desenrolar da história: Joe Hill consegue manter o suspense até os últimos momentos, fazendo com que seguremos o fôlego enquanto lemos páginas e mais páginas de ação acontecendo, mistérios sendo desvendados e cenas belíssimas que parecem passar por nossos olhos como um filme muito bem executado.

Tentei encontrar algum defeito em ‘O Pacto’, mas além da inexistência desse tal pacto – é, não tem pacto nenhum -, não achei nada que pudesse apontar como defeito de narrativa (tem uns errinhos de digitação, mas não são relevantes). Comparando este livro com o primeiro do autor, ‘A Estrada da Noite’, percebemos com clareza o amadurecimento de Joe Hill como autor e construtor de personagens. Ignatius Perrish é um ser complexo, em busca de justiça por um crime que não cometeu, uma criatura inocente que demora para perceber que as pessoas não são exatamente o que parecem a partir do momento em que contam o que realmente pensam sobre suas vidas e quais são os seus verdadeiros desejos.

O release do livro diz que, além de divertir, o romance nos leva a refletir sobre nossos conceitos maniqueístas de bem e mal, Deus e demônio, certo e errado, etc. E ele cumpre o que promete. Ig vai se transformando, pouco a pouco, na personificação do demônio – com direito a tridente, cobras rastejando ao seu redor e tudo mais – mas, por incrível que pareça, não é o vilão da história. Seus poderes ajudam-no a descobrir verdades inconvenientes e segredos enterrados nas profundezas da consciência, fazendo-nos pensar que o rapaz – o demônio, em carne, ossos e chifres – é o mais justo, inocente e menos pecador dentre os humanos. Um paradoxo, no mínimo.

O segundo livro de Joe Hill o consolida como um dos melhores autores de terror na literatura atual. O cara é bom, não há dúvidas disso. E seu segundo romance pode ser resumido em uma indagação que Ignatius Perrish se faz durante uma das passagens mais sombrias e arrepiantes da história: se Deus não aceita os pecadores no paraíso e a função do demônio é a de punir tais pecadores, então os dois devem estar jogando no mesmo time. Faz ou não faz sentido? É algo a se pensar.