O ano de 2011 trouxe muitas novidades e, entre elas, a criação de um novo selo editorial em solo tupiniquim especializado na publicação de fantasia, ficção científica e terror. Trata-se do selo Llyr Editorial, encabeçado pela escritora – e agora editora – Ana Cristina Rodrigues, dentro da editora carioca Vermelho Marinho.

‘As Cidades Indizíveis’ (180 p.) foi o primeiro livro do selo Llyr que veio parar em minhas mãos. E a primeira impressão foi ótima. Antes de começar a resenha, quero parabenizar o trabalho gráfico da editora, que está de parabéns tanto na diagramação quanto na revisão e capa.

Mas tratemos de conteúdo, porque quem vive de forma é modelo.

O fato que mais me chamou a atenção ao comprar o livro foi o de se tratar de uma coletânea de fantasia urbana. Não é um subgênero de fantasia que tenha muitas publicações nacionais e, por ser um dos assuntos que mais me interessa dentro desse nicho, não pude perder a oportunidade de lê-lo. O prefácio já nos prepara para uma viagem pelos mais diferentes tipos de cidades que se pode imaginar: futuristas, tradicionais, bucólicas, violentas, secretas... o leque que os nove contos trazem ao leitor é imenso.


Tenho que admitir que senti um impacto ao terminar de ler o livro. A princípio, fiquei um pouco decepcionado com o fato de não ver criaturas soturnas ou seres sobrenaturais andando entre os seres humanos, assustando-os e vendo-os como seres inferiores. No entanto, ao analisar melhor a obra, vemos que os personagens principais das histórias não são aqueles que trafegam pelas cidades; os protagonistas, em grande parte dos contos, são as cidades em si: suas reentrâncias e seus becos, suas vidas, persistência e eventual morte para que se renove.

Dentre os contos que compõem o livro, destaco "Galimatar", do organizador Fábio Fernandes; “O Longo Caminho de Volta”, de Ana Cristina Rodrigues; “Harmonia”, de Roberto de Sousa Causo; “Primeiro de Abril: Corpus Christi”, de Luiz Bras; e “Céu do Nunca”, de Guilherme Kujawski.

O conto de Fábio Fernandes, "Galimatar", se passa em uma cidade futurista, onde as línguas se tornaram tantas e tão confusas que a única forma de se chegar a algum consenso é através da linguagem da culinária. Gostei do tipo inusitado de linguagem e do tom pop dado ao conto. A cidade em si é uma miríade de luzes e sons, e os personagens principais são tão estranhos quanto a própria cidade. Talvez um reflexo da loucura urbana, ou produtores da loucura que a cidade é. Uma bela forma de começar a antologia.

O conto de Ana Cristina Rodrigues é, talvez, o mais divertido e dinâmico da antologia (esse e “Harmonia”, tenho que admitir, foram os meus preferidos). Se ambienta em uma cidade-biblioteca, onde a magia distancia as chuvas e umidade e um grupo de bibliotecárias tradicionalistas não permite que o acervo seja utilizado pela sociedade (qualquer semelhança com uma biblioteca NÃO É mera coincidência). Depois de anos exilada por ideias contrárias às das bibliotecárias, Clio volta até a cidade com o intuito de tentar reconstruir os pedaços da vida que deixou para trás. A personagem é bem construída e o desenlace da história termina de forma satisfatória.

“Harmonia”, de Roberto de Sousa Causo, é o maior da antologia. Conta a história de Sandra, uma animadora de festas que se vê envolvida com a resolução do assassinato de uma amiga. É um conto com ritmo de história policial, mas que, pouco a pouco, vai tomando ares de fantástico até culminar em uma explicação sobrenatural. O que gostei desse conto foi o fato da personagem ter tempo de sentir raiva, luto e curiosidade pela vida da amiga, e vasculhar tudo o que pode com a obstinação de uma detetive. O gato Chatran dá um charme especial para a história, e serve muito bem de ponte entre o real e fantástico.

“Primeiro de Abril: Corpus Christi”, de Luis Braz, conta a história de uma cidade repleta de personagens interessantes. É um conto rápido, que fala sobre sociedades secretas, códigos binários e a cidade em si, que muda à medida que seus atores principais exercem atos que a transformam. Com alcunhas como “Gato de Botas”, “Chapeleiro Louco” e “Penny Lane”, os personagens principais talvez funcionem como coadjuvantes do exercício de modificação da cidade, esse sim o tema central da história.

“Céu do Nunca”, de Guilherme Kujawski, é escrito em fluxo de consciência. É um conto obsessivo, de um homem que está fascinado pela cidade e vê imagens fantásticas desdobrando-se aos seus olhos. É aquele tipo de conto que parece refletir a mente do indivíduo e fica no limiar entre a loucura e a sanidade; eu, particularmente, gosto quando um conto é escrito nesse ritmo, quase como se nos obrigasse a deixar de pensar para presenciar os pensamentos – às vezes incoerentes, mas sempre inteligentes – do protagonista.

Ao terminarmos de ler “As Cidades Indizíveis”, percebemos que nossa leitura passa por diversas cidades e visões em um número pequeno de contos. São metáforas de nossa própria existência dentro das cidades e a relação que passamos a estabelecer com ela. Loucura, clausura, raiva, dúvida... todos esses sentimentos estão retratados nesses nove contos. As cidades são extensões de nossa loucura e nossa visão do fantástico, provando que, mesmo construídas com pedra e cimento, ainda podem nos fascinar.