O que estabelecer para um livro entrar no hall daqueles preferidos que selecionamos com tanto critérios – às vezes racionais, mas muitas vezes passionais? Eu, particularmente, estabeleço alguns valores abstratos enquanto leio um livro, como: a história me envolveu? Os personagens me cativaram? A história serviu para que eu mudasse minha visão de algum aspecto da sociedade ou a visse com outros olhos? Enfim, o livro serviu para moldar minha opinião sobre determinado assunto?
Posso dizer que “O Livro de Dave” (Alfaguara, 451 p.), do autor inglês Will Self, cumpriu todos esses quesitos com excelência.
O livro é intercalado em dois tempos distintos: o mais recente, no início do século XXI, acompanha o dia-a-dia de Dave, um taxista desequilibrado que está às voltas com uma ordem de restrição que o impede de chegar perto de seu filho Carl e de sua ex-mulher, Michelle; no futuro, temos o garoto Carl como protagonista (outro Carl, não o filho de Dave). A história se passa em 523 AD (After Dave), ano contado a partir da descoberta d’O Grande Livro de Dave, escritura sagrada que molda e regra a sociedade desse futuro pós-apocalítico. O Carl de 523 é perturbado pelo fato de não conhecer quem é o seu pai e esse é o fio que irá guiar sua parte da narrativa.
Desde o momento em que começamos a ler o livro, sabemos que o Dave do nosso presente, em um surto psicótico de loucura, escreveu um livro onde molda a sociedade à sua maneira particular – a sinopse deixa isso bem claro. Para Dave, homens e mulheres não devem viver como casais, os motoristas são os grandes carregadores do Conhecimento da humanidade, tudo o que é ruim ou pérfido deriva da imagem vil de Michelle (são coisas chellish, como o próprio livro coloca na narrativa do futuro) e todos os artefatos divinos possuem inscrições em alto relevo de madeinchina. Todas essas regras loucas, produzidas pela mente de um personagem desequilibrado, são consideradas divinas pelos habitantes da ilha de Ham (antiga Hampshire, no nosso tempo) e seguidas à risca por todos os seus moradores – mesmo que à força. Os amuletos chineses são os deiviuorks, as mulheres que não podem mais ter filhos são as mocréias, os homens que não têm filhos são os bichas e os sacerdotes são os motoristas. Desde o começo, conseguimos perceber todo o poder da narrativa de Self: sua criatividade e genialidade, bem como toda sua veia irônica e ácida. O mundo construído como pano de fundo, por si só, já é uma história que merece ser analisada.
Da parte da narrativa de Dave, tenho que destacar a construção interna do taxista: mesmo com um texto em terceira pessoa, Self consegue entrar na mente do protagonista de uma forma única, intercalando diálogos com discursos internos que mostram toda a visão decadente de mundo que Dave possui. De pronto, já sabemos que estamos lidando com um personagem desequilibrado, preconceituoso e cheio de opiniões contrárias às consideradas ‘saudáveis’ pela sociedade. Em suma, Dave é um porco, mas, ainda assim, nos afeiçoamos a ele. Talvez pelo fato de ser um protagonista e ter mais tempo na narrativa, torcemos para que ele consiga ver o filho, mesmo que, se estivéssemos na vida real, torcêssemos para que ele morresse da forma mais dolorosa possível. Esse poder de fazer com que amemos um personagem tão horrível quanto Dave é digno de nota por parte de Will Self.
Na parte de Carl, além de destacar toda a construção do mundo em si, tenho que tirar o meu chapéu para o tipo de linguagem utilizada. Temos duas linguagens no mundo pós-apocalítico: o bibici, mais utilizada em ocasiões formais, e idêntica a nossa linguagem; e o mokni, um tipo de pós-cockney utilizado de forma mais difusa na sociedade e desenvolvido por Will Self para ser difícil de ler. Todos os meus méritos para o tradutor Cássio de Arantes Leite, que conseguiu estilizar essa língua que mistura letras, números e símbolos de forma a continuar inteligível para a língua portuguesa. Mas tenho que admitir que foi um exercício de paciência gratificante passar por páginas e mais páginas de diálogos, como: “Nah, nah, gaguejou ele, içeh kumigu i kuele i ku Deiv. C iuzotrus, eh melioh decê nuxafurderu i juntah uzotrus praforadilah. Runti eh meu véliu. 6 ahi, jah disseru tchau pu Runti?”. O glossário no fim do livro, para termos e expressões, é extremamente eficaz.
Se pudesse destacar um ponto negativo no quesito narrativa, acho que falaria um pouco sobre a forma como a história do Carl do futuro é prejudicada: dentro de seus próprios tempos, as histórias se intercalam entre passado e presente. Na parte de Dave, vamos de 1987 para 2002 e temos sempre Dave como protagonista de seus capítulos. Já na parte de Carl, vamos de 509 até 524 AD e nem sempre temos Carl como protagonista do capítulo. Essa opção acaba prejudicando um pouco o acompanhamento de uma história tão complicada como a desse futuro alternativo: muitas vezes, não sabemos onde estamos na história e nem quem está guiando nossos olhos pelas palavras. Se eu pudesse mudar alguma coisa, seria a de tornar a passagem do futuro cronologicamente correta, apenas para evitar problemas de compreensão por parte do leitor.
‘O Livro de Dave’ é uma paródia sobre religiões. Não tome essa afirmativa como uma crítica ou um aspecto negativo da obra: tudo bem que paródias geralmente são vistas como subprodutos de alguma coisa ‘original’ e se caracterizam por beber da fonte, extrair alguns aspectos e regurgitar um pastiche muitas vezes pouco convincente e cheio de falhas. Mas quando Will Self escreve uma paródia, temos que parar para analisar o poder da palavra ‘paródia’ e o que ela é capaz de fazer.
A história contada em ‘O Livro de Dave’ é uma paródia da sociedade. Mais especificamente, das religiões e da forma arbitrária pela qual elas são construídas e celebradas. Antes de mergulhar na história, tenho que dizer que me identifiquei com a visão que Will Self tem sobre esse assunto – sem querer criar polêmicas, mas querendo suscitar discussões, gostaria que vocês falassem um pouco sobre construção de religiões na parte dos comentários, porque tudo o que não sou é um expert nesse assunto –: para Self, as religiões são artifícios criados pela sociedade como exercício de poder. Em maior ou menor grau, servem para moldar leis e regras morais à sociedade, mas muitas vezes se calcam em leis arbitrárias que devem ser cegamente seguidas – os tais ‘dogmas’, verdades que não precisam ser comprovadas, apenas aceitas (pelo menos na minha formação católica, foi isso que aprendi. Mas como já disse, não sou um expert, corrijam-me se eu estiver errado).
Acho que a grande função do livro não se restringe a contar apenas uma boa história. Will Self utiliza sua narrativa para expor suas opiniões de mundo e difundi-las, e acredito que a forma utilizada por ele é bastante eficaz: ao invés de fazer um ensaio ou um manifesto cheio de seriedade, ele utiliza a metáfora e o humor para mostrar como enxerga as religiões. Talvez isso tenha feito com que eu me identificasse tanto com o livro e o autor: a forma como a história é exposta é crucial para que você se sinta confortável para concordar ou discordar do autor sem que pareça ranzinza ou rebanhado por um discurso mais incisivo.
No fim, o que fica d’O Livro de Dave é uma leitura bastante positiva e proveitosa. Temos personagens extremamente bem construídos, um pano de fundo muito original e particular e uma história que se destaca por ser extremamente bem contada. Um dos meus livros preferidos, sem sombra de dúvidas.
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