Vivemos na era da informação. Informação rápida, descartável, consumível por diferentes formatos e nos mais diferentes suportes, em um mundo que parece estar sempre prestes a nos soterrar com terabytes de arquivos úteis e inúteis. Mas onde estão os limites dessa sociedade tão ‘bem informada’? Será que somos racionais ao que consumimos, a como consumimos e ao porque consumimos tanta informação, necessitamos de tantos gadgets e precisamos estar sempre conectados aos nossos twitters, e-mails e facebooks? É dentro dessa premissa que nasceu a minissérie britânica “Black Mirror”.

Produzida pelo Channel 4 no país da rainha – talvez mais conhecido no Brasil por ser o canal responsável pelo documentário Beyond Citizen Kane, proibido por Itamar Franco em 1993 por fazer denúncias à Rede Globo de Televisão – e criada por Charlie Brooker, o título da série se justifica pelo próprio produtor como ‘uma metáfora para todos os espelhos negros que seguem nossa sociedade atual, na forma de tablets, telas de LCD e smartphones’. A série se desdobra em três episódios completamente independentes, onde elenco, produção e até mesmo época em que a história se ambiente é diferente. O fio condutor de toda a experiência é a abordagem dada à tecnologia, ponto-chave que me fez morrer de amores pela série e sim, me fez parar para pensar um pouco (o que é raro, sobretudo com séries de TV).

Talvez não seja exagero dizer que a minissérie está entre as melhores coisas que já vi na vida produzida para a TV. Intenso, envolvente e questionador são alguns dos adjetivos que posso utilizar para qualificar a minissérie, que não se preocupa em levantar bandeiras ou ser hipócrita nos temas em que aborda. Tudo que aparece na tela é mostrado de forma crua, mas é inevitável não nos pegarmos questionando o que está acontecendo ali e de que forma aquilo pode acontecer conosco em um futuro não muito distante – isso quando não acabamos por perceber que já está acontecendo.

O primeiro episódio – penso que propositalmente o mais chocante de todos, para chamar atenção e pegar a audiência pela gola da camisa – se passa em nossa realidade atual e começa com um telefonema para o primeiro-ministro britânico. Ao atender o telefonema, o homem descobre que a princesa Susannah, adorada por todos (uma analogia à Diana ou Kate Middleton?) foi sequestrada. No vídeo enviado com uma gravação da própria Susannah (upado direto para o Youtube por uma conta encriptada), o sequestrador tem uma única e bizarra exigência: às quatro da tarde daquele mesmo dia, o primeiro-ministro britânico deve se apresentar em rede nacional e lá se relacionar sexualmente com um porco (é, vocês leram certo). Do contrário, a princesa será assassinada.

Nesse primeiro episódio, intitulado “The National Anthem” – e alcunhado pelo Channel 4 como “uma parábola distorcida sobre a era Twitter” – é interessante notar como as formas de manipulação da mídia estão completamente perdidas. O primeiro-ministro não quer que a informação vaze, mas o vídeo exigindo o resgate foi postado diretamente no Youtube e, não importa o quanto deletem, outra conta sempre irá repostá-la e perpetuar o ciclo; outra exigência do governo é de que a televisão não fale nada sobre o assunto, mas o nome da princesa está nos Trending Topics mundiais e os blogs jornalísticos já estão enlouquecidos em busca de atualizações sobre o sequestro.

Outro ponto gerado pelo episódio é a catarse coletiva causada pela expectativa do primeiro-ministro aceitar ou não a exigência do sequestrador. Enquetes são feitas, piadas são perpetuadas e, em contraponto, sentimos toda a angústia do primeiro-ministro quando as alternativas vão se escasseando e o prazo vai chegando ao fim. Esse contraponto, de mostrar quem somos na frente de uma tela de computador para atingir uma pessoa específica versus como essa pessoa encara o que está sendo falado sobre ela talvez sirva para a gente pensar um pouco em como utilizamos uma ferramenta como o Twitter e como ela pode ser poderosa, seja para o bem ou para o mal.

Já o segundo episódio – intitulado “15 Million Merits” – é o mais longo e intenso de todos os três episódios. Ambientado em uma estação completamente claustrofóbica em um futuro não muito distante (teoricamente, uma vez que nada indica tempo ou local durante todo o capítulo), somos apresentados ao personagem Bingham Madsen, um dos muitos moradores da estação, que vive em função de pedalar na frente de uma tela de LCD para produzir energia elétrica através de sua bicicleta ergométrica. Na estação, obesos são lixeiros – por serem incapazes de pedalarem por muito tempo para produzir energia – e o ‘dinheiro’ para alimentação, compra de programas de TV e atualizações dos avatares é adquirido através do tempo de pedaladas.

Perturbado por imagens constantes de propagandas de conteúdo sexual nas paredes de LCD da instalação – propagandas que não podem ser ignoradas a menos que se pague para não assisti-las – e sem muito a fazer além de pedalar, Bing conhece Abi, uma garota que sonha em participar do programa “Hot Shots” – uma referência clara a programas de talentos como X-Factor e American Idol – e que, para participar, precisa de 15 milhões de méritos (nome da moeda adquirida pelas pedaladas) para a compra do passaporte que garante a participação no show.

Paro por aqui para não estragar mais nada que tenha a ver com o roteiro. Nesse episódio, a crítica é a mais pungente que pode existir: de propagandas que aparecem quando menos esperamos, passando por manipulação de nossos gostos e alienação – afinal, para que comprarmos tantos complementos para nossos avatares?, porque e para quem pedalamos?, o que diabos estamos fazendo aqui e porque não conhecemos nada além disso? –, isso sem contar com a crítica à inabilidade em se rebelar ou de tentar ir contra o sistema em que estamos presos. Nesse capítulo, senti uma grande semelhança com os clássicos “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, e “1984”, de George Orwell, seja pela sensação de claustrofobia, pela ambientação clean do ‘está tudo bem e estamos fazendo um belo trabalho aqui’ ou pela própria alienação inerente aos personagens – sobretudo ao gordinho seboso que pedala ao lado de Bingham e parece bastante confortável com todo o sistema em que está inserido. Sem dúvida, o melhor dos três episódios.

O terceiro e último episódio – com o excelente título de “The Entire History of You” – se passa em um futuro não muito distante ou em uma realidade alternativa (mais uma vez, nada é explicitado, e essa sensação de incerteza e de não subestimar a inteligência do espectador é uma jogada de mestre), onde cada pessoa possui um aplicativo chamado “Grão”, que é implantado atrás da orelha e conectado ao cérebro. Através de um pequeno controle remoto, a pessoa consegue manipular esse grão – seja para si mesmo ou projetando a imagem em qualquer tela de LCD – e reviver suas memórias, repassar o que ouviu e viu e poder reavaliar as situações. Também há a possibilidade de apagar memórias inúteis ou que não sejam interessantes por um motivo qualquer. Uma forma de nunca esquecer os bons momentos, segundo a empresa anunciante do produto.

No capítulo, o ponto-chave é a obsessão do personagem Liam, um advogado que está na expectativa de conseguir um novo emprego, pela fidelidade de sua esposa Ffion. Talvez esse seja o episódio mais pessoal, que delega mais tempo às obsessões particulares do personagem e se firma no microcosmos do relacionamento entre os dois. O Grão aqui funciona como a comprovação última do passado, demostrando que não existe mais confiança entre os personagens. Liam passa uma madrugada bêbada indo e voltando em suas memórias, analisando a forma como Ffion se comporta quando está conversando com um ex-namorado e quando conversa com ele: a diferença nos gestos, no olhar, no sorriso... É notável a destruição gradativa que guia o personagem de Liam ao longo da história causada pelas idas e vindas em suas memórias através do grão, culminando em atitudes às vezes impensadas e injustificadas. Outro capítulo excepcional, que encerra a trilogia de forma bastante interessante.

Um parêntese antes da conclusão: os dois últimos episódios são a prova concreta de que a) criatividade não está morta e b) utilizar sci-fi para construir uma boa história não é questão de efeitos especiais multi-milionários nem de devaneios exagerados e focados em avanços tecnológicos. A grande sacada de qualquer boa história, seja ela real ou alternativa, com navezinhas ou trolls debaixo de pontes, é se focar em personagens e em como eles reagem às situações, sejam elas quais forem. É um erro acreditar que qualquer história se segure por uma boa ambientação ou por explosões e jogadas de câmera com cortes de 1,5s por tomada. “Black Mirror” é um ótimo exemplo de como a ficção científica pode ser utilizada sem apelos ou bandeiras, mostrando apenas uma boa história que, propositalmente, não define local ou tempo, uma vez que podem acontecer em qualquer lugar, de Bristol ao Rio de Janeiro.

“Black Mirror”, sem dúvida, está entre as grandes séries que vi desde que comecei com esse hábito. Curta, porém intensa, a série só peca por ser muito curta. Se continuasse com esse nível de atuação, ambientação e ótimas ideias, tenho certeza de que seria um sucesso de longa data. No mais, é uma vantagem para os preguiçosos uma série de três episódios, ainda mais quando eles são independentes entre si. Você não tem desculpa alguma para não assisti-la. Então vá atrás dela.

Agora.