Quão pequeno pode ser um momento que afetará para sempre sua vida? Uma troca de olhares, um esbarrão na rua ou um sorriso trocado podem ser o bastante para fazer com que todo o sentido de amor e afetividade mude completamente. É nesse aspecto tão efêmero e microscópico que Haruki Murakami trabalha seu mais recente livro, “1Q84” (Knopf, 944p).

O livro acompanha duas narrativas distintas: a de Aomame, uma instrutora física e assassina de homens que abusam de mulheres, e a de Tengo, um professor de matemática/escritor que trabalha para um inescrupuloso editor reescrevendo o livro de uma menina de 17 anos com vistas a ganhar um importante prêmio literário. O fio que une esses dois personagens gira em torno de um pequeno momento no qual Tengo e Aomame esbarraram as mãos no colégio e trocaram um olhar mais demorado. Depois disso, nenhum dos dois passa a ser o mesmo.

Em um livro tão extenso quanto “1Q84”, muito pode ser explorado narrativamente. Murakami tem um poder incrível de nos dar sempre frases simples para sentimentos complexos, para nos fazer amar quem ele quer que seja amado e odiar quem deve ser odiado. Ele tem o poder de fazer com que nos importemos com o livro e que sintamos as dores e os anseios dos personagens. Esses sentimentos, no caso de “1Q84”, tem a vantagem de ser construídos com morosidade, quase como se cada capítulo fosse uma nova peça sendo acrescentada ao quebra-cabeça complexo e cheio de ares mitológicos que é a história de Tengo e Aomame. Para alguns, pode parecer uma narrativa chata e arrastada – para mim, em alguns momentos, realmente pareceu –, mas, avaliando o livro como uma unidade, dá para perceber que a intenção é realmente essa: seduzir o leitor aos poucos, arrastá-lo para esse novo mundo com o propósito de fazer ele acreditar em tudo que lê.

Mas, afinal, o que é 1Q84? Para Aomame, primeira personagem a embarcar nesse universo paralelo e particular – que praticamente ninguém percebe que existe – é um mundo onde existem duas luas no céu e os uniformes dos policiais são diferentes; um mundo onde as coisas parecem ser, mas não são. Numa clara referência à Alice no País das Maravilhas, Aomame embarca nesse universo depois de sair de um táxi na interestadual e entrar por uma abertura proibida aos transeuntes do metrô. Ao voltar para a superfície, o mundo está diferente, mas apenas ela parece perceber.

Já para Tengo, o mundo de 1Q84 se personifica na imagem de Fuka-Eri, a excêntrica garota de 17 anos cujo livro ele está reescrevendo. O livro, chamado “Air Crysalis”, conta a história de uma menina que vivia reclusa em uma comunidade religiosa e, por deixar uma cabra que estava sob seus cuidados morrer, é trancada com o corpo do animal em um quarto escuro como forma de punição. Isolada, ela vê pequenos seres minúsculos saindo da boca da cabra, os chamados “Little People”, entidades mágicas que lembram os liliputianos e que constroem uma crisálida voadora para que a menina possa ir embora dali.

“1Q84” aborda diversos temas que nos são desconfortáveis, e talvez aqueles que mais se destacam sejam a violência contra a mulher e a influência negativa que a religião pode trazer para a vida de uma pessoa. Aomame – que, na infância, fazia parte de uma comunidade religiosa parecida com a descrita no livro “Air Crysalis” – é uma personagem completamente ferida pela influência da religião, por não ter agradado aos pais como deveria e por perder o contato com eles por conta de sua saída da religião. É uma personagem – como praticamente todos os protagonistas do Murakami – triste, solitária e conformada com a situação em que vive.

Tengo também possui essa característica: vivendo em um relacionamento com uma mulher casada e passando os dias dando aulas elementares e as noites bebendo café e tentando escrever alguma coisa, o homem também é uma decepção para o pai – um coletor de assinaturas da rede de TV NHK – e a única memória que tem de sua mãe é a de um homem lambendo-lhe os seios, que ele não tem certeza ser ou não seu pai.

Esse talvez tenha sido um dos livros mais densos que já li. Não apenas por ser gigantesco, com suas quase mil páginas, mas por tratar de temas como religião, violência contra a mulher, morte e, principalmente, a fragilidade do ser humano. Talvez Murakami queira ter sido tão ambicioso ao demonstrar todos esses elementos de uma só vez e talvez por isso eu tenha demorado quase seis meses para terminar de lê-lo. Sinceramente, passei a fazer parte do mundo de 1Q84 e não queria ter que me despedir dos personagens, coisa que raramente acontece quando leio um livro.

É muito difícil comentar qualquer coisa sobre esse livro sem soltar uma centena de spoilers, mas é importante salientar que é uma história bastante diferente de tudo o que já li por aí. É uma história de amor, é uma crítica social, é uma história conservadora, é uma história sexualmente pulsante, é uma história sobre religião, é uma história sobre não-religião... e mais um monte de histórias, tudo isso ao mesmo tempo. Há algumas bizarrices no meio da história – uma que eu posso citar fora de contexto e que não prejudica muito a história de modo geral é a explosão espontânea de um cachorro –, mas acho que qualquer um que conhece a mente japonesa espera alguma coisa out of the box.

Acho que paro por aqui. Tenho a dizer que 1Q84 não é uma história confortável nem vai fazer você dar pulos de alegria. É um livro narrativamente poderoso, com qualidades bastante únicas. Não é aquele estilo de livro-distração que você lê no ponto de ônibus, nem é daqueles livros cheios de acontecimentos sucessivos que tiram o seu fôlego. É uma história lenta, que deve ser apreciada e não devorada, mas que, no fim, vale muito a pena. É quase como um daqueles filmes de quatro horas de duração que você odeia assistir do começo ao fim, mas que fica na sua mente por um longo tempo. Leiam!